quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

E para hoje a proposta é um conto! Para ler, comentar e, se gostarem partilhar e dar a conhecer. Enjoy!!!


Célia e eu
Nasci pelas mãos de um ourives. Não pensem que fui feita em série numa fábrica! Claro que não. Eu sou, como é chique dizer agora, handmade. Nascemos das mãos de um ourives, eu e a minha irmã, de propósito para ornamentar os dedos de duas pessoas muito especiais num dia também ele muito especial. Não somos irmãs gémeas. A minha irmã é mais nova do que eu mas é maior. Também é um pouquinho mais simples do que eu. É verdade que eu gosto mais de adornos do que ela… Ambas fomos feitas com ouro de grande qualidade – 18 quilates. Feitas com cuidado, perfeitas. Grossas porque as pessoas que nos encomendaram queriam que fôssemos bem vistosas. Queriam que o mundo soubesse e percebesse que aqueles dois corações se tinham juntado e que se completavam. Provavelmente terá sido também essa a razão pela qual escolheram que fôssemos feitas de ouro e polidas (uma vez que o ouro polido brilha mais). Mandaram gravar, no nosso interior, o nome de cada um. Eu, que era a mais pequena, fiquei com o nome dele. A minha irmã, maior que eu, ficou com o nome dela. Ambas tínhamos ainda inscrito forever. Vá-se lá saber porquê mas os apaixonados têm tendência a achar que as coisas escritas em língua inglesa são mais românticas. Eu, que era a mais pequena mas também a mais vaidosa, tive direito a uma pequena decoração que, quanto a mim me tornava bem mais bonita. Eu tinha cinco diamantes incrustados…seguidos. Quando me vi e à minha irmã prontas assumo que fiquei toda ufana! Estávamos tão bonitas!! Só poderíamos ter um futuro brilhante e ser muito felizes.
Quando ficámos assim prontinhas, juntas numa caixa, deitadas sobre uma almofada de cetim, assumo que eu não conseguia esconder o meu entusiasmo. Falava, falava, falava. E a minha irmã ouvia, ouvia, ouvia. Fazia conjeturas sobre quem seria o casal que nos tinha encomendado. Seriam pessoas bonitas? Felizes e apaixonadas deviam ser! Quando nos viriam buscar? Quando seríamos usadas? E, finalmente chegou o dia. Ainda me lembro da emoção que senti quando a noiva olhou para mim e me pegou com os dedos delicados. Era tão bonita! Os olhos brilhavam de felicidade. Num rosto bonito e sensível, eram os olhos castanhos que se destacavam. Por serem grandes, por terem aquele brilho e por se sentir neles todo o amor que sentia pelo noivo. Transbordava luz. Percebi o porquê de eu ser tão mais pequena que a minha irmã. Ela era tão pequenina, franzina que se lhe pressentia uma certa fragilidade. As mãos e os dedos quase pareciam de uma criança de tão pequenos e finos se apresentarem. Olhei em seguida para o noivo. Era um homem alto, também ele moreno. Diria que interessante à vista. Traços regulares. Um nariz um pouco grande mas que se adequava no conjunto. A boca também expressava um ligeiro sorriso. O corpo mostrava que era de alguém que passaria algum tempo a praticar desporto em ginásios ou, a julgar pelo seu aspeto bronzeado, a praticar desporto na rua. Aliás tanto ele como ela tinham um aspeto atlético. Gostei do que vi. Foi amor por nós à primeira vista. Ele perguntou à noiva, que se chamava Célia, fiquei a saber, se era assim que ela nos tinha idealizado. Se não fosse mandava-se fazer outras. Fiquei com o coração em suspenso. Já me tinha afeiçoado à Célia. Tinha gostado dela e da sua energia. Mas a Célia pegou em mim, colocou-me no seu dedo e respondeu: “está perfeita! Era mesmo isto que eu tinha idealizado”. Sosseguei então e aguardei pacientemente que fosse colocada outra vez no meu leito de seda, com a minha irmã. Em seguida a caixa que nos continha foi colocada num saco também ele todo brilho e glamour. Pensei que eu e a minha irmã estávamos muito bem entregues a este casal. E, já num saquinho todo bonito, seguimos para a nossa nova casa (que veio a ser a casa onde ela morava) enquanto aguardávamos o grande dia. Eu ocupava os dias a sonhar com o grande dia, com a igreja, com a festa, com os convidados…ia ser tão feliz nesta minha vida com a “minha” Célia! Tinha certezas disso!!
E chegou o grande dia! Da caixinha fomos mudadas para uma concha linda, adornada com plumas brancas e no centro fomos depositadas eu e a minha irmã. A entrada na igreja foi magnífica. A “minha” Célia à frente, pela mão do pai e eu e a minha irmã, majestosamente deitadas na concha, a sermos levadas pelas mãos de uma pequena princesa que também parecia uma noiva. Foi um momento difícil de escrever. Sentia-se que no ar existiam sentimentos bons. Todos pareciam irradiar felicidade. O Paulo…estava lindo e com um olhar tão apaixonado a olhar para a “minha Célia”. Foi dos momentos mais lindos que vivi até hoje e tive certeza nessa hora que iríamos ser muito felizes com aquele casal. Já no dedo da Célia observei com maior cuidado aquele que agora ostentava a minha irmã na sua mão. Que bem que ficava a minha irmã no dedo de Paulo. Toda ela era brilho. Sempre foi menos faladora que eu mas sentia que também ela estava feliz e orgulhosa do dedo que lhe tinha calhado. Paulo continuava lindo. Observava Célia com um olhar apaixonado mas, pela primeira vez, senti que naquele olhar trespassava um certo sentimento de posse para com a “minha” Célia. Bem…nada a temer…afinal ela agora era a mulher dele. E eles amavam-se! Ia ser uma vida linda! E continuei a observar a festa, a noiva e a sonhar com a lua-de-mel e com a vida de sonho que iria ter com a “minha” Célia.
O pesadelo começou logo na lua-de-mel. Na praia a “minha” Célia portou-se mal e observou homens de um modo interessado. De acordo com Paulo, a “minha” Célia devia querer partilhar a cama com eles. De acordo com Paulo, lia-se nos olhos da “minha” Célia que ela não estava satisfeita com o sexo que ele lhe providenciava. De acordo com Paulo, via-se claramente, que ela queria praticar sexo com aqueles homens que eram tão odiosos quanto ela, porque, também eles a observavam com lascívia. De acordo com Paulo ela estava a desrespeitá-lo…e provavelmente não o amava tanto como ele pensava no dia em que casaram. A “minha” Célia olhava incrédula para ele. Nada disso se tinha passado, disse ela, tentando manter a calma. Célia repetia-lhe que só o amava a ele. Que não entendia essa reação brusca, violenta e totalmente inesperada. Paulo saiu do quarto. Disse que se ia acalmar…e que seria melhor ela ficar no quarto à espera que ele voltasse. E a “minha” Célia assim fez. Esperou por ele. Chorou. Pensou no que tinha sucedido. E censurou-se porque, provavelmente, teria observado aqueles rapazes com maior interesse do que tinha percebido. Paulo voltou mais tarde, já a noite ia alta. Contou-me a minha irmã, que o tinha acompanhado, que Paulo bebeu e dançou toda a noite com outras mulheres hospedadas, também elas no resort. Quando entrou, a “minha” Célia lançou-se nos seus braços e pediu-lhe desculpa. E Paulo, de um modo ternurento, decidiu perdoar. Sentou-a no seu colo, afagou-lhe o cabelo como se faz a uma criança. Célia prometeu portar-se melhor. Paulo sossegou. Fizeram amor. Mais tarde, enquanto ambos dormiam, de mãos entrelaçadas, eu conversava com a minha irmã sobre o que se passara. Eu acreditava que tudo estava bem. Tinha sido apenas um pequeno incidente que fora ultrapassado pelo amor dos dois. A minha irmã apresentava uma posição mais cética. Começava a não gostar muito de Paulo e de algumas atitudes dele. Penso que não me terá contado tudo o que ele fez durante essa noite. Apenas me disse que ele cobrava a Célia o que ele não era capaz de dar…
O tempo deu razão à minha irmã. O “pequeno” incidente na lua-de-mel tornou-se mais e mais frequente ao longo daqueles dois anos de casamento. Tão frequente que só não era diário porque havia alturas em que o Paulo saía de casa e só voltava 4 ou 5 dias depois. Normalmente o tempo suficiente para as nódoas negras que ele tinha infligido à “minha” Célia começarem a desaparecer. Vinha sempre a sentir-se um farrapo. Chorava. Dizia que a amava…e Célia perdoava e perdoava e perdoava. E eu também perdoava. Porque afinal eu era o símbolo daquela união, daquele amor que outrora, supostamente, existira. Eu queria acreditar que Célia poderia não olhar para os homens na rua como olhava, provocando-os. Eu queria acreditar que Célia poderia perder menos tempo no trânsito e chegar a horas a casa. Eu queria acreditar que Célia não precisava de sair com as amigas, de falar com as amigas. Eu queria acreditar que Célia não precisava de nada disso porque, afinal, ela tinha o Paulo. Nós tínhamos o Paulo e isso bastava para sermos felizes. Ou não bastava?!
A “minha” Célia foi perdendo o brilho que a caracterizava. O olhar, outrora sonhador e cintilante, era agora baço. A pele era macilenta. O rosto e a sua expressão perderam qualquer sinal de vida. Pensou que se deixasse de viver, e apenas existisse, os seus problemas com Paulo desapareceriam. Também eu fui perdendo o brilho. Perdi dois dos cinco diamantes que me faziam tão bonita. E os problemas não desapareceram. Por mais que Célia tentasse, havia sempre algo que ela fazia que aborrecia Paulo, que o irritava e que o levava à violência. Há muito que Paulo tinha passado da violência verbal à violência física. As nódoas negras cobriam-lhe o corpo. A cara não. Essa ele queria sempre bonita e sorridente para ele…
 Nada disto era o que tinha sonhado para mim. Continuava a gostar da “minha” Célia apesar de ficar um pouco zangada com ela. Como era possível ela não se revoltar? Como era possível ela suportar tanto em nome de um amor que há muito tinha desaparecido? A minha irmã foi ficando cada vez mais calada e sombria. Também ela me confidenciava que não era aquela a vida que tinha projetado para ela…não gostava de Paulo. Penso que nunca terá gostado. Minha irmã sempre foi mais perspicaz que eu…
Naquela noite Paulo chegou já com algum excesso de álcool. Implicou com a sopa que não era do gosto dele. Partiu o prato que tinha o arroz com a carne porque ninguém poderia comer algo tão salgado. Decidiu ir dormir. A zanga maior rebentou porque ele encontrou a camisa que tinha usado no dia anterior ainda em cima da cadeira. E mais uma vez gritou e levantou a mão. Mas a “minha” Célia nesse dia não suportou mais. Olhou-o diretamente nos olhos, desafiadora e disse-lhe que se ele lhe tocasse ela o mataria. E disse aquilo com tanta veemência, com tanta verdade na voz que todos (o Paulo, eu e a minha irmã) acreditámos que ela poria em prática as suas palavras com as próprias mãos se necessário fosse. Célia tinha atingido o ponto de rutura. A raiva pode muito e naquele momento pôde imenso. Paulo percebeu isso…e deixou-a ir. Célia libertou-se nessa noite daquele casamento que a tinha quase destruído para nunca mais voltar.
 E eu? Eu fiquei esquecida numa caixa, numa gaveta, no fundo de uma cómoda durante muitos anos. Tinha por companhia apenas a minha irmã. Paulo, num gesto de raiva, tinha-a lançado à cara de Célia no dia do divórcio. A “minha” Célia guardou as duas, lá bem no fundo da gaveta, para nunca mais olhar para nós. Nós éramos as testemunhas vivas do seu calvário. Nada disto tinha sido o meu sonho…nada tinha corrido bem.
Alguns anos mais tarde saímos ambas da gaveta. Fomos levadas de um modo negligente num reles lenço de papel…decididamente a “minha” Célia só me trazia dissabores. Chegámos a uma loja muito bonita, cheia de luzes…fomos vendidas… Doeu-me a separação da “minha” Célia, ainda que entendesse o porquê. Mais tarde eu, a minha irmã e mais uns quantos amigos de ouro que andavam por aquela caixa fomos fundidos. Hoje tornei-me parte de um fantástico anel. A minha irmã transformou-se nuns brincos que acompanham o anel. E estamos numa montra em todo o nosso esplendor, à espera de sermos levados por alguém…

Hoje chegou uma mulher para nos experimentar…linda, lembra-me vagamente uma pessoa que conheci. Uma mulher com um passo determinado, apesar do corpo franzino, uma voz e um olhar seguros. Um belo cabelo castanho. Quando ela me colocou no dedo reconheci aquela mão e aqueles dedos finos. Percebi que ela tinha gostado de mim…a “minha” Célia tinha-me reencontrado. Adquiriu-nos. De facto tínhamo-nos tornados em belas joias. Saímos dali já no dedo e nas orelhas de Célia com a certeza que esta nova vida seria bem melhor que a nossa vida enquanto alianças. E foi. Mas isso…isso é toda uma outra história…

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