E para hoje a proposta é, novamente, um conto. A fotografia que ilustra o conto é do fotógrafo David Miguel Oliveira Costa. Enjoy
Reencontros
Planearam encontrar-se no parque.
Reencontrar-se seria um termo mais adequado. Decorridos 10 anos sem as suas
vidas se terem cruzado, decidiram eles próprios forçar o destino. Não poderia
dizer que havia dez anos que não sabiam um do outro. Nos tempos que correm isso
é quase impossível…
A verdade é que depois da
separação decorreram longos meses, que passaram a anos, sem efetivamente
saberem um do outro. Por considerarem que seria mais fácil fazer o luto da
relação, por considerarem que seria mais simples seguir em frente, por
considerarem que, desta forma, poderiam “inventar” com maior facilidade uma
nova vida sem a presença daquele outro que por tanto tempo tinha sido o
companheiro dos momentos bons e dos menos bons, decidiram não se procurarem.
Foram apagados os números de telefone à medida que se procurava apagar a
presença daquela pessoa na vida de cada um. Foram arrumadas num canto escuro da
memória as lembranças de tempos mais felizes; foram devidamente arquivadas as
fotografias que relembravam que aquela pessoa tinha feito parte da vida do
outro. Tudo foi feito para que aquele relacionamento passasse a fazer parte de
um passado esquecido e dificilmente recordado.
Contudo…o tempo passou e fez o
que de melhor ele sabe fazer. Deixou cair uma leve cortina de esquecimento
sobre os momentos menos bons, curou as feridas que se passeavam por aqueles
corpo e mente e suavizou as cicatrizes que tinham ficado dos momentos menos
agradáveis da vida deles a dois. O tempo passou, amenizou tudo o que de negativo
existia naquela relação que tinha falhado e deixou armazenado, num espaço
próprio, apenas aquilo que é bom de guardar e recordar. E foi precisamente
nesse momento que nasceu a curiosidade. Saber que caminhos teriam sido
trilhados por cada um, que vida tinha existido na vida de um sem o outro, que
bons momentos tinham sido capturados para a eternidade e sim, saber quem seria
o ser que partilharia o lugar deixado vago anos antes. Nos tempos que correm,
alimentar essa curiosidade é extremamente fácil. E foi assim que, decorridos
alguns anos votados ao esquecimento de uma pessoa, a curiosidade levou a melhor
e se efetuou o primeiro passo para a reaproximação: Pesquisar as redes sociais,
encontrar, como se de um estranho se tratasse, aquela pessoa que fora parte
integrante da sua vida. Ambos percorreram esse caminho de investigação pelas
redes sociais. Quando as pessoas foram muito próximas fica a sensação que ficam
ligadas, para sempre, por um fio invisível que permite, a seu tempo, uma ténue
comunicação. E foi esse fio, tão leve como o fio com que a aranha constrói a sua
teia que levou a que no momento em que ela cedeu à curiosidade de espreitar a
vida dele nas redes sociais, também ele sentiu a mesma vontade de procurar a
sua página e de a analisar.
Num primeiro momento a sensação
foi de estranheza. Tentar atualizar anos de silêncios não é fácil. Ela percebeu
que ele continuava a viver na mesma cidade. Do homem que ela conhecera, não
restava muito. O ar travesso dera lugar a um ar mais sério, compenetrado, de
quem assume as suas responsabilidades para com a vida. Mantinha a boa forma
física, provavelmente fruto da prática da nova febre que perpassava pelo país:
o running. Afinal de contas, ele sempre fora um desportista. Pelas fotografias
a que tinha acesso lia-se a sua vida: provavelmente um emprego sério, que lhe
permitia receber acima da média, férias habitualmente na praia, algumas viagens
para fora do país (nada de locais muito exóticos, maioritariamente, Europa),
uma família (mulher e filho). Não o conhecesse tão bem e pensaria que se tinha
dado bem na vida. Contudo, ela conhecia aqueles olhos e aquele sorriso melhor
que os seus próprios olhos e o seu próprio sorriso. E percebia que aquele olhar
apresentava uma névoa…algo, no seu caminho, lhe tinha retirado o brilhozinho
nos olhos e o sorriso travesso. Aquela imagem que se apresentava era uma visão
mais grave e severa do homem que ela conhecera.
E ele, o que via? Via uma mulher
que apesar de apresentar um ar mais maduro, algumas rugas que ele não conhecia,
se mantinha igual a si própria. Mantinha aquele ar de desafio para com a vida
que sempre lhe conhecera, um certo ar de menina admirada com o mundo e com tudo
o que a rodeia. Encontrara o amor outra vez…pelo menos as fotografias assim o
indicavam, nos últimos 3 anos… Talvez por continuar a parecer tanto com a
mulher que ele amara, 10 anos antes, não conseguiu controlar uma pequena
pontada daquilo que parecia ser ciúme. Afinal, aquela ainda parecia a miúda
dele! E terá sido por isso que ele decidiu lançar um tímido “olá”, aguardando a
sua resposta, num misto de receio e esperança. A resposta (um “olá, és mesmo
tu?”) só chegou dois dias depois. Dois intermináveis dias em que ela se
questionou se deveria ou não responder àquele singelo “olá”. A vontade e a
curiosidade levaram a melhor, e ela respondeu. Estranharam-se nos primeiros 5
minutos de conversa. Depois…depois foi como se tivessem aberto as comportas de
tudo aquilo que queriam ter dito um ao outro e que calaram por tanto tempo. Perceberam
que não se tinham enganado muito quanto às conjeturas que tinham feito sobre a
vida de um e outro. Ele casado, a viver a vida que sempre ambicionara para si:
pacífica, caseira, sem grandes sonhos mas também sem grandes desgostos.
Pai…sempre cultivara essa vontade. “Um miúdo fantástico” – dizia ele.
E ela? Ela tinha andado meio
perdida na vida…como sempre estivera desde que se conhecia por pessoa.
Continuou presente, por muitos anos, o receio de se acomodar a uma vida
pequeno-burguesa, de viver de rotinas, de estar sempre no mesmo local…até que
um dia…há três anos, a profissão a obrigou, finalmente, a ficar efetiva num
local. E fazia então três anos que trabalhava no mesmo local…na mesma cidade.
Tinha conhecido uma pessoa…e há três anos que estava com ela. Uma pessoa que a
entendia, que percebia o seu desejo de independência e liberdade, que a
respeitava. Bons companheiros dizia ela…
E as conversas continuaram,
recuperando uma ligação que se tinha esbatido mas nunca desaparecido da vida de
ambos… Até ao dia em que ele lhe lançou um desafio: “vamos encontrar-nos”. De
um modo virtual tinham voltado a fazer parte da vida um do outro. Contavam a
sua vida, as suas histórias, partilhavam as preocupações, as vontades, como
dois bons velhos companheiros de estrada. Um único tema nunca tinha sido abordado:
os dois, enquanto casal. A relação. O porquê de terem falhado, de se terem
deixado. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que não existia qualquer
possibilidade de se encontrarem. Que, apesar desta recente reaproximação, das
horas de conversa, da profunda empatia que continuava a sentir, um encontro
físico seria algo demasiado arriscado para o seu bem-estar conseguido a duras
penas. E no entanto, como se os dedos fossem dominados por uma força maior, deu
por sim a escrever: “Quando?”.
Desde que foi tomada a decisão de
se verem até ao momento em que se encontraram no parque, poucos dias decorreram.
Chegou o dia e o momento. Apesar de todas as conversas, apesar de se conhecerem
há tantos anos, ambos sentiam um nervosismo crescente ao se aproximarem um do
outro. Observaram-se longamente. Faltavam as palavras num momento em que a
intensidade falava mais alto. Apesar de todas as fotografias que tinham
observado minuciosamente, sentiam que se observavam, pela primeira vez, em dez
anos. Um e outro viam dançar à sua frente as memórias partilhadas, as
expectativas goradas, as alegrias vividas, as tristezas suportadas. Num ápice o
passado surgiu-lhes com uma nitidez de contornos que fazia pensar que o mesmo
tinha acontecido ontem. Abraçaram-se. Um abraço apertado, carregado de lamentos
por tudo o que não se tinha vivido e repleto de promessas do que poderia ser
vivido ainda. Falaram durante algum tempo de tudo e nada, como sempre tinha
sido apanágio da sua relação. Contudo, aos poucos, as conversas foram ficando
mais escassas, instalando-se, aos poucos, o silêncio. E esse silêncio
manteve-se durante algum tempo. Não que isso os incomodasse. Sempre tinha sido
assim: o silêncio não os incomodava. Comunicavam através dele, através do
olhar. E o olhar de ambos dizia o mesmo: “e se não tivessem desistido um do
outro, naquela época?”; “Em que momento tinham deixado os egos pessoais se
sobreporem ao sentimento que sempre os tinha unido?” E foi nesse silêncio, de
mãos dadas, que ambos perceberam que seriam toda a vida o “e se?” um do outro. Perceberam
que há sentimentos que nunca morrem e que toda a vida eles se sentiriam unidos
por um laço invisível que nunca os deixaria sentirem-se totalmente completos,
se separados. Mas perceberam também que ambos tinham trilhado um caminho que
não lhes permitia retroceder. Ambos tinham construído uma outra vida, que não
contemplava esse passado. E, no mesmo momento em que essas certezas se
desenhavam nas suas mentes, de um modo que desafiava a lógica, os corpos
aproximaram-se como que impelidos por uma força superior. Os corpos esses, não
obedeciam à racionalidade das suas mentes. Tocaram-se. Reconheceram o cheiro um
do outro, as suas necessidades e vontades. Por breves momentos foi como se
nunca se tivessem separado. Aquela era a outra metade do seu ser. Beijaram-se.
Um beijo intenso, repleto de uma saudade escondida, de um sentimento poderoso,
de uma vontade de ficar embora já contendo nele o prenúncio da partida. Um
beijo de reencontro de bocas, línguas, corpos e vontades mas também um beijo de
despedida, selando o acordo tácito que ambos tinham firmado com o olhar. Antes
de partirem, ela colocou-lhe uma única questão: “És feliz?” Ele lançou-lhe um
último olhar, respondendo com alguma lassitude na voz: “tenho junto a mim o que
me faz mais feliz: o meu filho”.
Nunca mais se viram. Não voltaram
a contactar pelas redes sociais. Ainda assim, até ao último dos seus dias
guardaram, num lugar muito recôndito do coração, a certeza que, naquela tarde e
por um momento muito breve, se voltaram a encontrar e voltaram a sentir-se
completos.