sexta-feira, 26 de janeiro de 2018


Photo by Brooke Lark on Unsplash



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“Cada dia, uma nova oportunidade”
“O homem nasceu para viver e não para se preparar para viver” – Boris Pasternak
Consideramos sempre que o início de um novo ano é o momento ideal para uma nova vida! A passagem do dia 31 para o dia 1 é, habitualmente, a noite de todos os excessos até porque o dia 1 marcará o início de toda uma nova atitude do nosso ser perante a vida! E portanto, ao ritmo das passas e das badaladas, decidimos que iremos fazer uma alimentação mais regrada, iremos voltar ao ginásio e/ ou ao desporto de rua, iremos dormir mais e melhor, iremos passar menos tempo em frente à televisão a ver séries. Iremos ser mais saudáveis! Ponto! E essas são as decisões no que à nossa saúde física diz respeito! Porque também somos meninos para tomarmos decisões para a nossa saúde psíquica: iremos ler mais! Iremos aprender a dizer não com mais convicção! Iremos aprender a ser menos insatisfeitos! Iremos dizer às pessoas que, de facto, as amamos! Iremos iniciar uma nova atividade (aquele curso de italiano que há tanto tempo pensamos frequentar!) Iremos, iremos, iremos…
E depois…e depois o mês de janeiro acontece. O dia um passou, já se passaram alguns dias e estamos praticamente no fim do mês de janeiro. E que temos nós para contar?
Os planos para o novo ano, por essa altura, já foram sendo esquecidos. O Natal e o fim de ano arruinaram as nossas economias portanto não há muito por que sair de casa até porque há que pensar em poupar! Resultado dessa situação monetária, já perdemos mais do que uma tarde e uma noite a ver filmes e séries. O desporto foi iniciado com passos de bebé porque continua um frio tremendo. A alimentação continuou meio desregrada nos primeiros dias (afinal havia tantas sobras do fim de ano!) e, depois de uma tentativa de detox, tão na moda, voltámos aos nossos velhos hábitos: afinal, que mal fará um pouco de pão com manteiga? Afinal, este geladinho do Mac Donald’s vem mesmo a calhar porque até estou meio deprimida…E quanto às outras decisões? Aprender a dizer não revela-se bem mais difícil do que pensávamos. Já falhamos com a nossa palavra ao realizar trabalho que não nos competia. Por isso, as leituras já ficaram para outro dia. Ainda nem pesquizámos sobre o curso de italiano. “Assim como assim” não temos muito dinheiro disponível…Também ainda não tivemos oportunidade de dizer às pessoas que as amamos porque, afinal, estamos num mês tão difícil a nível monetário que nem nos apetece sair nem conviver…e assim, sem darmos conta mas em passos gigantes, os velhos hábitos voltam a instalar-se. E mais uma vez deixámos para trás aquela pessoa que queremos ser em função daquela pessoa que nos habituámos a ser. Só porque é mais fácil. Só porque é rotina. Só porque talvez não sejamos capazes…e deixamo-nos arrastar mais um ano até que em dezembro voltamos a pensar nos planos que traçámos e que falharam e pensamos” desta é que é!”
Há que mudar essa atitude. Não podemos pensar que tudo vai mudar apenas porque o ano passou de 2017 para 2018. A tentativa de mudar tem de ser diária. Cada dia tem de ser pensado como aquilo que ele é: uma dádiva que nos é oferecida todas as manhãs (temos tendência a esquecer isso);cada dia é uma nova oportunidade para tentar fazer diferente; uma nova possibilidade de corrigir o que consideramos estar errado na nossa vida; uma nova oportunidade para lutar para sermos a pessoa que queremos ser e para termos a vida que queremos ter. Cada dia, uma nova oportunidade. Cada dia uma oportunidade para fazer mais e melhor. Cada dia uma oportunidade para viver a 100%! Como dizia Pasternak “O Homem nasceu para viver e não para se preparar para viver”

E quando chegamos ao fim do dia e percebemos que não mudámos nada? Quando percebemos que continuamos na mesma, com as mesmas atitudes, os mesmos vícios? Verificamos que ainda não foi desta que iniciámos aquele novo projeto tão pensado? Não há que entristecer ou desesperar. Sabemos que, como dizia a Scarlett O’Hara de E Tudo o Vento Levou, amanhã é outro dia! E por isso ser-nos-ão oferecidas mais 24 horas para fazer diferente, para lutar por aquilo que é, de facto importante, que é ser feliz! As novas oportunidades chegam todos os dias. Cabe-nos a nós não fecharmos os olhos para a eterna maravilha que é estar vivo e mostrar que somos capazes de Viver com toda a qualidade que tal verbo nos merece.

domingo, 21 de janeiro de 2018


E para hoje a proposta é, novamente, um conto. A fotografia que ilustra o conto é do fotógrafo David Miguel Oliveira Costa. Enjoy

Reencontros

Planearam encontrar-se no parque. Reencontrar-se seria um termo mais adequado. Decorridos 10 anos sem as suas vidas se terem cruzado, decidiram eles próprios forçar o destino. Não poderia dizer que havia dez anos que não sabiam um do outro. Nos tempos que correm isso é quase impossível…
A verdade é que depois da separação decorreram longos meses, que passaram a anos, sem efetivamente saberem um do outro. Por considerarem que seria mais fácil fazer o luto da relação, por considerarem que seria mais simples seguir em frente, por considerarem que, desta forma, poderiam “inventar” com maior facilidade uma nova vida sem a presença daquele outro que por tanto tempo tinha sido o companheiro dos momentos bons e dos menos bons, decidiram não se procurarem. Foram apagados os números de telefone à medida que se procurava apagar a presença daquela pessoa na vida de cada um. Foram arrumadas num canto escuro da memória as lembranças de tempos mais felizes; foram devidamente arquivadas as fotografias que relembravam que aquela pessoa tinha feito parte da vida do outro. Tudo foi feito para que aquele relacionamento passasse a fazer parte de um passado esquecido e dificilmente recordado.
Contudo…o tempo passou e fez o que de melhor ele sabe fazer. Deixou cair uma leve cortina de esquecimento sobre os momentos menos bons, curou as feridas que se passeavam por aqueles corpo e mente e suavizou as cicatrizes que tinham ficado dos momentos menos agradáveis da vida deles a dois. O tempo passou, amenizou tudo o que de negativo existia naquela relação que tinha falhado e deixou armazenado, num espaço próprio, apenas aquilo que é bom de guardar e recordar. E foi precisamente nesse momento que nasceu a curiosidade. Saber que caminhos teriam sido trilhados por cada um, que vida tinha existido na vida de um sem o outro, que bons momentos tinham sido capturados para a eternidade e sim, saber quem seria o ser que partilharia o lugar deixado vago anos antes. Nos tempos que correm, alimentar essa curiosidade é extremamente fácil. E foi assim que, decorridos alguns anos votados ao esquecimento de uma pessoa, a curiosidade levou a melhor e se efetuou o primeiro passo para a reaproximação: Pesquisar as redes sociais, encontrar, como se de um estranho se tratasse, aquela pessoa que fora parte integrante da sua vida. Ambos percorreram esse caminho de investigação pelas redes sociais. Quando as pessoas foram muito próximas fica a sensação que ficam ligadas, para sempre, por um fio invisível que permite, a seu tempo, uma ténue comunicação. E foi esse fio, tão leve como o fio com que a aranha constrói a sua teia que levou a que no momento em que ela cedeu à curiosidade de espreitar a vida dele nas redes sociais, também ele sentiu a mesma vontade de procurar a sua página e de a analisar.
Num primeiro momento a sensação foi de estranheza. Tentar atualizar anos de silêncios não é fácil. Ela percebeu que ele continuava a viver na mesma cidade. Do homem que ela conhecera, não restava muito. O ar travesso dera lugar a um ar mais sério, compenetrado, de quem assume as suas responsabilidades para com a vida. Mantinha a boa forma física, provavelmente fruto da prática da nova febre que perpassava pelo país: o running. Afinal de contas, ele sempre fora um desportista. Pelas fotografias a que tinha acesso lia-se a sua vida: provavelmente um emprego sério, que lhe permitia receber acima da média, férias habitualmente na praia, algumas viagens para fora do país (nada de locais muito exóticos, maioritariamente, Europa), uma família (mulher e filho). Não o conhecesse tão bem e pensaria que se tinha dado bem na vida. Contudo, ela conhecia aqueles olhos e aquele sorriso melhor que os seus próprios olhos e o seu próprio sorriso. E percebia que aquele olhar apresentava uma névoa…algo, no seu caminho, lhe tinha retirado o brilhozinho nos olhos e o sorriso travesso. Aquela imagem que se apresentava era uma visão mais grave e severa do homem que ela conhecera.
E ele, o que via? Via uma mulher que apesar de apresentar um ar mais maduro, algumas rugas que ele não conhecia, se mantinha igual a si própria. Mantinha aquele ar de desafio para com a vida que sempre lhe conhecera, um certo ar de menina admirada com o mundo e com tudo o que a rodeia. Encontrara o amor outra vez…pelo menos as fotografias assim o indicavam, nos últimos 3 anos… Talvez por continuar a parecer tanto com a mulher que ele amara, 10 anos antes, não conseguiu controlar uma pequena pontada daquilo que parecia ser ciúme. Afinal, aquela ainda parecia a miúda dele! E terá sido por isso que ele decidiu lançar um tímido “olá”, aguardando a sua resposta, num misto de receio e esperança. A resposta (um “olá, és mesmo tu?”) só chegou dois dias depois. Dois intermináveis dias em que ela se questionou se deveria ou não responder àquele singelo “olá”. A vontade e a curiosidade levaram a melhor, e ela respondeu. Estranharam-se nos primeiros 5 minutos de conversa. Depois…depois foi como se tivessem aberto as comportas de tudo aquilo que queriam ter dito um ao outro e que calaram por tanto tempo. Perceberam que não se tinham enganado muito quanto às conjeturas que tinham feito sobre a vida de um e outro. Ele casado, a viver a vida que sempre ambicionara para si: pacífica, caseira, sem grandes sonhos mas também sem grandes desgostos. Pai…sempre cultivara essa vontade. “Um miúdo fantástico” –  dizia ele.
E ela? Ela tinha andado meio perdida na vida…como sempre estivera desde que se conhecia por pessoa. Continuou presente, por muitos anos, o receio de se acomodar a uma vida pequeno-burguesa, de viver de rotinas, de estar sempre no mesmo local…até que um dia…há três anos, a profissão a obrigou, finalmente, a ficar efetiva num local. E fazia então três anos que trabalhava no mesmo local…na mesma cidade. Tinha conhecido uma pessoa…e há três anos que estava com ela. Uma pessoa que a entendia, que percebia o seu desejo de independência e liberdade, que a respeitava. Bons companheiros dizia ela…
E as conversas continuaram, recuperando uma ligação que se tinha esbatido mas nunca desaparecido da vida de ambos… Até ao dia em que ele lhe lançou um desafio: “vamos encontrar-nos”. De um modo virtual tinham voltado a fazer parte da vida um do outro. Contavam a sua vida, as suas histórias, partilhavam as preocupações, as vontades, como dois bons velhos companheiros de estrada. Um único tema nunca tinha sido abordado: os dois, enquanto casal. A relação. O porquê de terem falhado, de se terem deixado. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que não existia qualquer possibilidade de se encontrarem. Que, apesar desta recente reaproximação, das horas de conversa, da profunda empatia que continuava a sentir, um encontro físico seria algo demasiado arriscado para o seu bem-estar conseguido a duras penas. E no entanto, como se os dedos fossem dominados por uma força maior, deu por sim a escrever: “Quando?”.
Desde que foi tomada a decisão de se verem até ao momento em que se encontraram no parque, poucos dias decorreram. Chegou o dia e o momento. Apesar de todas as conversas, apesar de se conhecerem há tantos anos, ambos sentiam um nervosismo crescente ao se aproximarem um do outro. Observaram-se longamente. Faltavam as palavras num momento em que a intensidade falava mais alto. Apesar de todas as fotografias que tinham observado minuciosamente, sentiam que se observavam, pela primeira vez, em dez anos. Um e outro viam dançar à sua frente as memórias partilhadas, as expectativas goradas, as alegrias vividas, as tristezas suportadas. Num ápice o passado surgiu-lhes com uma nitidez de contornos que fazia pensar que o mesmo tinha acontecido ontem. Abraçaram-se. Um abraço apertado, carregado de lamentos por tudo o que não se tinha vivido e repleto de promessas do que poderia ser vivido ainda. Falaram durante algum tempo de tudo e nada, como sempre tinha sido apanágio da sua relação. Contudo, aos poucos, as conversas foram ficando mais escassas, instalando-se, aos poucos, o silêncio. E esse silêncio manteve-se durante algum tempo. Não que isso os incomodasse. Sempre tinha sido assim: o silêncio não os incomodava. Comunicavam através dele, através do olhar. E o olhar de ambos dizia o mesmo: “e se não tivessem desistido um do outro, naquela época?”; “Em que momento tinham deixado os egos pessoais se sobreporem ao sentimento que sempre os tinha unido?” E foi nesse silêncio, de mãos dadas, que ambos perceberam que seriam toda a vida o “e se?” um do outro. Perceberam que há sentimentos que nunca morrem e que toda a vida eles se sentiriam unidos por um laço invisível que nunca os deixaria sentirem-se totalmente completos, se separados. Mas perceberam também que ambos tinham trilhado um caminho que não lhes permitia retroceder. Ambos tinham construído uma outra vida, que não contemplava esse passado. E, no mesmo momento em que essas certezas se desenhavam nas suas mentes, de um modo que desafiava a lógica, os corpos aproximaram-se como que impelidos por uma força superior. Os corpos esses, não obedeciam à racionalidade das suas mentes. Tocaram-se. Reconheceram o cheiro um do outro, as suas necessidades e vontades. Por breves momentos foi como se nunca se tivessem separado. Aquela era a outra metade do seu ser. Beijaram-se. Um beijo intenso, repleto de uma saudade escondida, de um sentimento poderoso, de uma vontade de ficar embora já contendo nele o prenúncio da partida. Um beijo de reencontro de bocas, línguas, corpos e vontades mas também um beijo de despedida, selando o acordo tácito que ambos tinham firmado com o olhar. Antes de partirem, ela colocou-lhe uma única questão: “És feliz?” Ele lançou-lhe um último olhar, respondendo com alguma lassitude na voz: “tenho junto a mim o que me faz mais feliz: o meu filho”.

Nunca mais se viram. Não voltaram a contactar pelas redes sociais. Ainda assim, até ao último dos seus dias guardaram, num lugar muito recôndito do coração, a certeza que, naquela tarde e por um momento muito breve, se voltaram a encontrar e voltaram a sentir-se completos.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018


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Ainda sobre o caso H&M…
Gosto de pessoas sensíveis! Mais do que gostar, adoro-as. (peço o favo de lerem estas primeiras palavras com um tom irónico) No campo das coisas de que gosto também incluo um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen intitulado “As pessoas sensíveis” (para ler ou reler - já que falamos no tema da sensibilidade). Começa com os magistrais versos:
“As pessoas sensíveis não são capazes/ de matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas…”. É um poema de denúncia àqueles que a autora considera hipócritas. E sempre que me cruzo com sensibilidades extremas e com aquilo que me cheira a hipocrisia, lembro-me deste poema. E, quanto a mim, é precisamente o que aconteceu no “caso H&M”. Nada mais que hipocrisia, sensibilidades apuradas, puritanismos falsos, moralismos fingidos.
Antes de mais, quero deixar bem claro que para mim isto é um “não problema”. Assumo que quando a polémica rebentou não pensei que sentiria a necessidade de escrever sobre o assunto. Para mim estávamos a assistir a mais uma polémica empolada pela força das redes sociais. Analisando a fotografia, a bendita da camisola e o catita que era o modelo pensei que depressa a polémica se extinguiria por existir uma total falta de combustível que a alimentasse. Isto é, pensei que depressa a polémica se iria extinguir uma vez que se iria perceber que nada naquela acusação fazia sentido! Contudo, o tempo veio demonstrar que estava enganada, com vários artistas a cancelar o seu contrato com a H&M, com vários textos/crónicas a serem escritos sobre o assunto (textos que sublinhavam a importância de se debater este flagrante erro da empresa) com várias vozes a levantarem-se e a exigirem o retratamento da empresa, que não tardou a chegar. Levantaram-se as bandeiras antirracistas! Cuidado que temos ali mais uma vez a supremacia do colono branco! Cuidado que estamos perante uma fotografia que trata como macaco uma criança negra! Imensas foram as vozes que se ergueram contra esta “insuportável” imagem, este erro tão hediondo.
Perante isto tudo, e tendo em conta, que eu não vejo nada do que acima foi descrito, senti finalmente a necessidade de escrever sobre o assunto. E a necessidade surge sobretudo de perceber se efetivamente sou eu que sou demasiado insensível a certas questões ou se é o mundo que cada vez escolhe olhar com mais atenção para questiúnculas esquecendo os temas com os quais se devia preocupar de facto!
É claro que é possível fazer a leitura que tantos estão a fazer…é claro que depois de nos chamarem a atenção para a mensagem da fotografia e para o modelo possamos pensar que escolheram a criança negra de propósito para ilustrar aquela frase…Mas acham mesmo que isso faz algum sentido??? Em primeiro lugar, há que pensar na questão da língua. Tanto quanto sei, a expressão “little monkey” é utilizada na língua inglesa da mesma forma que em português usamos expressões como “a minha pulguinha”, “o meu ratito”, “o meu piolho”, “o estorninho” ou a “minha formiga rabiga”. Nenhum destes “animais” é particularmente simpático à visão mas…é óbvio que esta é uma forma carinhosa de se referir aos seus rebentos e não uma forma literal de os caracterizar. Na língua inglesa muitas mais formas haverá. Portanto questiono: houve uma falha assim tão grande ao criar esta camisola? Ou apenas se usou uma expressão (adaptada) da própria língua? Será completamente impensável que ao fotografarem o modelo, a interpretação racista do conjunto camisola/ modelo não tenha existido? Para mim é plausível pensar que tal ideia não aflorou a mente de ninguém.




Se gosto da camisola? Não, não gosto. Mas não me ofende vê-la a ser envergada por uma criança negra ou uma criança branca. O que me parece que aconteceu neste caso foi que se criou uma celeuma à volta de uma situação que, quanto a mim, nunca foi equacionada. O ver comportamentos racistas em todo o lado não será também ele uma forma de racismo? Não será uma dificuldade ainda em lidar com as várias cores que o ser humano tem? Não será uma necessidade de olhar sempre para o lado da diferença?
Este tipo de atitude: interpretar como uma mensagem racista uma simples camisola vestida por um modelo negro, não só não ajuda a combater o preconceito como demonstra que ainda há muito caminho por trilhar. Toda esta atitude mais não é do que, para mim, e como dizem os franceses, “chercher la petite bête” (procurar o pequeno bicho), no sentido em que se perde tempo em pequenos detalhes não se preocupando com as coisas que de facto têm importância. Estas pessoas que tanto se incomodaram com uma “má escolha do modelo para determinada camisola” assobiam para o lado quando ouvem que a mesma camisola foi, provavelmente, feita por alguma pessoa altamente explorada ou, quem sabe, por uma criança em lugares como Índia, Camboja ou Bangladesh. Incomodamo-nos com os nadas do mundo porque as preocupações a sério são demasiado avassaladoras. Elas exigiriam de nós uma reação bem mais forte que a de bradar contra uma má escolha da H&M. Assim, com esta irritação contra a loja e contra todos os que deixaram que esta fotografia chegasse ao grande público, sentimos que cumprimos o nosso dever de bons cidadãos, mostrámos que somos gente que luta contra qualquer indício de racismo. Ajudámos a mudar um pouco o mundo…ainda que fosse num tema insignificante…
Contudo, a verdade é que mais não fizemos do que, mais uma vez, mostrar que bem no fundo continuamos a ser racistas disfarçados de cidadãos conscientes.


terça-feira, 9 de janeiro de 2018


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A verdade acima de tudo? Não!
Desde bem pequena que me lembro de ouvir, como conselhos dos meus pais, que deveria ser sempre sincera e nunca faltar à verdade. Um dos primeiros princípios que me foi incutido é que “mentir é feio”. E sim, cresci a colocar esses preceitos em prática. Dotada de uma natureza naturalmente faladora e espontânea, dizia praticamente tudo o que me passava pela cabeça, agradasse ou não a quem ouvia e seguia em frente, como um arauto da verdade. Assumo que me tornei numa pessoa que descreveria, na época, como sincera a qualquer custo, demasiado frontal, não me preocupando em analisar se a “minha” verdade podia trazer alguma vantagem a quem a ouvia ou, pior ainda, se a “minha” verdade poderia magoar a pessoa que a ouvia. Para mim, o valor da verdade era o valor máximo e ele sobrepunha-se a todos os outros.
Com o passar do tempo comecei a questionar este valor da “verdade acima de tudo”. Seria essa a forma mais correta de agir com o outro? A seu tempo percebi que não. Com a passagem do tempo aprendi a comportar-me de outra forma, isto é, a agir de uma forma menos verdadeira. Dito assim até soa mal mas o próprio Oscar Wilde dizia que um pouco de sinceridade podia ser perigoso mas que a sinceridade em demasia era absolutamente fatal. E pode, de facto, ser fatal, para quem a diz e para quem a ouve e, sobretudo, para a relação que se estabelece entre essas duas pessoas. Aprendi que a verdade é, obviamente, algo a que todos aspiramos mas que nem sempre é fácil ouvi-la. E aprendi, também, que nem sempre a verdade, ou pelo menos toda a verdade, é necessária e positiva. Passo a explicar: dizer tudo de todas as maneiras, como dizia o poeta, pode ser nocivo para nós e para aqueles de quem gostamos. Considero que é uma forma de cometer “sincericídio” (termo interessante que encontrei, aqui há tempos, num artigo sobre este tema) e segundo o qual ao colocarmos a verdade acima de qualquer valor poderemos estar a magoar-nos a nós e aos outros, sem que existisse essa necessidade à partida.
Desengane-se quem já está a pensar que sou pela mentira. Claro que não. Como poderia ser? Apenas defendo que em certos momentos e em certas situações, mais vale calar certos aspetos, mais vale omitir pormenores ou mais vale tingir a verdade com cores menos fortes e duras. Ser direto no que se diz, sem floreados, dizer tudo o que se sabe sem olhar aos males que isso possa provocar não é característica de pessoas que colocam a verdade acima de tudo, que prezam a verdade como o maior bem mas sim característica de pessoas que têm grande dificuldade em serem empáticas e de se colocarem no lugar do outro.
E que situações são essas em que considero que se pode ser “menos” verdadeiro? Acima de tudo, quando a pessoa não está preparada para ouvir a verdade que temos para contar. Por vezes, a realidade está tão absurdamente longe daquilo que a pessoa perceciona que ouvir a verdade, em toda a sua crueldade, poderia causar um mal-estar tão grande que seria difícil recuperar dele. Alguém efetivamente empático irá preparando, aos poucos, o caminho para essa verdade, preparando a pessoa para ter a força suficiente para a verdade que mais tarde chegará. Tal facto levará à segunda situação em que considero ser aceitável não ser totalmente verdadeiro. Como anteriormente disse, há que escolher o momento certo para divulgar informação que se possa ter. Em certas situações, será melhor calar o que se sabe e esperar pelo momento certo (ou que julgamos certo) para dar conhecimento daquilo que sabemos. Dizer uma verdade no meio de uma discussão apenas servirá para abrir uma ferida que dificilmente será curável, por exemplo. Dizer uma verdade dura a uma pessoa que já se encontra fragilizada será, de facto necessário? Penso que apenas será uma forma de magoar ainda mais a pessoa sem ter a certeza que a mesma terá força para assimilar mais essa informação. E essa pergunta leva-me a uma outra situação em que considero que se pode ser um pouco omisso: dizer toda a verdade será de alguma forma benéfico para a pessoa? Lembro sempre daqueles casos em que depois de um divórcio ou separação, cuja causa foi uma traição, e em nome da verdade, se informa a pessoa traída de determinados factos por nós conhecidos: “Ah pois! Eu já o/ a tinha visto com outra pessoa. Vi-o em tal ocasião…” Será efetivamente necessária essa informação? Isso trará algum benefício para quem acabou de ouvir mais essa novidade? Penso que não. Considero informação desnecessária que podia ter sido omitida uma vez que naquela situação já não virá trazer qualquer alteração, não irá aportar nada de bom, trazendo, pelo contrário, mais uma mágoa a um coração já por si mutilado.
Assumo que aprendi a, por vezes, faltar um pouco à verdade. Sim, por vezes conto meias verdades ou conto “verdades matizadas” por cores mais simpáticas. Sim, por vezes tenho informação que não partilho com amigos porque penso que os danos que ela irá causar são bem maiores que qualquer benefício que essa informação pudesse trazer.

Percebi que dizer e ouvir a verdade não são atitudes prazerosas. E, como tal, temos tendência a evitá-las quando sabemos que elas poderão ser geradoras de conflito ou de mágoas e tristezas. Não defendo, como é óbvio, a mentira. Mas não defendo toda a verdade, a todo o custo. Penso que ficou claro que defendo é que se deve escolher o momento que julgamos certo para dizer toda a “nossa” verdade. Devemos escolher com cuidado as palavras que vamos usar e atuar de modo refletido. A verdade pode ser dura de ouvir. Mas com esse cuidado, com essa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro será, com certeza, melhor recebida e percecionada. Por isso reafirmo: Verdade acima de tudo? Não!

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

E para hoje a proposta é um conto! Para ler, comentar e, se gostarem partilhar e dar a conhecer. Enjoy!!!


Célia e eu
Nasci pelas mãos de um ourives. Não pensem que fui feita em série numa fábrica! Claro que não. Eu sou, como é chique dizer agora, handmade. Nascemos das mãos de um ourives, eu e a minha irmã, de propósito para ornamentar os dedos de duas pessoas muito especiais num dia também ele muito especial. Não somos irmãs gémeas. A minha irmã é mais nova do que eu mas é maior. Também é um pouquinho mais simples do que eu. É verdade que eu gosto mais de adornos do que ela… Ambas fomos feitas com ouro de grande qualidade – 18 quilates. Feitas com cuidado, perfeitas. Grossas porque as pessoas que nos encomendaram queriam que fôssemos bem vistosas. Queriam que o mundo soubesse e percebesse que aqueles dois corações se tinham juntado e que se completavam. Provavelmente terá sido também essa a razão pela qual escolheram que fôssemos feitas de ouro e polidas (uma vez que o ouro polido brilha mais). Mandaram gravar, no nosso interior, o nome de cada um. Eu, que era a mais pequena, fiquei com o nome dele. A minha irmã, maior que eu, ficou com o nome dela. Ambas tínhamos ainda inscrito forever. Vá-se lá saber porquê mas os apaixonados têm tendência a achar que as coisas escritas em língua inglesa são mais românticas. Eu, que era a mais pequena mas também a mais vaidosa, tive direito a uma pequena decoração que, quanto a mim me tornava bem mais bonita. Eu tinha cinco diamantes incrustados…seguidos. Quando me vi e à minha irmã prontas assumo que fiquei toda ufana! Estávamos tão bonitas!! Só poderíamos ter um futuro brilhante e ser muito felizes.
Quando ficámos assim prontinhas, juntas numa caixa, deitadas sobre uma almofada de cetim, assumo que eu não conseguia esconder o meu entusiasmo. Falava, falava, falava. E a minha irmã ouvia, ouvia, ouvia. Fazia conjeturas sobre quem seria o casal que nos tinha encomendado. Seriam pessoas bonitas? Felizes e apaixonadas deviam ser! Quando nos viriam buscar? Quando seríamos usadas? E, finalmente chegou o dia. Ainda me lembro da emoção que senti quando a noiva olhou para mim e me pegou com os dedos delicados. Era tão bonita! Os olhos brilhavam de felicidade. Num rosto bonito e sensível, eram os olhos castanhos que se destacavam. Por serem grandes, por terem aquele brilho e por se sentir neles todo o amor que sentia pelo noivo. Transbordava luz. Percebi o porquê de eu ser tão mais pequena que a minha irmã. Ela era tão pequenina, franzina que se lhe pressentia uma certa fragilidade. As mãos e os dedos quase pareciam de uma criança de tão pequenos e finos se apresentarem. Olhei em seguida para o noivo. Era um homem alto, também ele moreno. Diria que interessante à vista. Traços regulares. Um nariz um pouco grande mas que se adequava no conjunto. A boca também expressava um ligeiro sorriso. O corpo mostrava que era de alguém que passaria algum tempo a praticar desporto em ginásios ou, a julgar pelo seu aspeto bronzeado, a praticar desporto na rua. Aliás tanto ele como ela tinham um aspeto atlético. Gostei do que vi. Foi amor por nós à primeira vista. Ele perguntou à noiva, que se chamava Célia, fiquei a saber, se era assim que ela nos tinha idealizado. Se não fosse mandava-se fazer outras. Fiquei com o coração em suspenso. Já me tinha afeiçoado à Célia. Tinha gostado dela e da sua energia. Mas a Célia pegou em mim, colocou-me no seu dedo e respondeu: “está perfeita! Era mesmo isto que eu tinha idealizado”. Sosseguei então e aguardei pacientemente que fosse colocada outra vez no meu leito de seda, com a minha irmã. Em seguida a caixa que nos continha foi colocada num saco também ele todo brilho e glamour. Pensei que eu e a minha irmã estávamos muito bem entregues a este casal. E, já num saquinho todo bonito, seguimos para a nossa nova casa (que veio a ser a casa onde ela morava) enquanto aguardávamos o grande dia. Eu ocupava os dias a sonhar com o grande dia, com a igreja, com a festa, com os convidados…ia ser tão feliz nesta minha vida com a “minha” Célia! Tinha certezas disso!!
E chegou o grande dia! Da caixinha fomos mudadas para uma concha linda, adornada com plumas brancas e no centro fomos depositadas eu e a minha irmã. A entrada na igreja foi magnífica. A “minha” Célia à frente, pela mão do pai e eu e a minha irmã, majestosamente deitadas na concha, a sermos levadas pelas mãos de uma pequena princesa que também parecia uma noiva. Foi um momento difícil de escrever. Sentia-se que no ar existiam sentimentos bons. Todos pareciam irradiar felicidade. O Paulo…estava lindo e com um olhar tão apaixonado a olhar para a “minha Célia”. Foi dos momentos mais lindos que vivi até hoje e tive certeza nessa hora que iríamos ser muito felizes com aquele casal. Já no dedo da Célia observei com maior cuidado aquele que agora ostentava a minha irmã na sua mão. Que bem que ficava a minha irmã no dedo de Paulo. Toda ela era brilho. Sempre foi menos faladora que eu mas sentia que também ela estava feliz e orgulhosa do dedo que lhe tinha calhado. Paulo continuava lindo. Observava Célia com um olhar apaixonado mas, pela primeira vez, senti que naquele olhar trespassava um certo sentimento de posse para com a “minha” Célia. Bem…nada a temer…afinal ela agora era a mulher dele. E eles amavam-se! Ia ser uma vida linda! E continuei a observar a festa, a noiva e a sonhar com a lua-de-mel e com a vida de sonho que iria ter com a “minha” Célia.
O pesadelo começou logo na lua-de-mel. Na praia a “minha” Célia portou-se mal e observou homens de um modo interessado. De acordo com Paulo, a “minha” Célia devia querer partilhar a cama com eles. De acordo com Paulo, lia-se nos olhos da “minha” Célia que ela não estava satisfeita com o sexo que ele lhe providenciava. De acordo com Paulo, via-se claramente, que ela queria praticar sexo com aqueles homens que eram tão odiosos quanto ela, porque, também eles a observavam com lascívia. De acordo com Paulo ela estava a desrespeitá-lo…e provavelmente não o amava tanto como ele pensava no dia em que casaram. A “minha” Célia olhava incrédula para ele. Nada disso se tinha passado, disse ela, tentando manter a calma. Célia repetia-lhe que só o amava a ele. Que não entendia essa reação brusca, violenta e totalmente inesperada. Paulo saiu do quarto. Disse que se ia acalmar…e que seria melhor ela ficar no quarto à espera que ele voltasse. E a “minha” Célia assim fez. Esperou por ele. Chorou. Pensou no que tinha sucedido. E censurou-se porque, provavelmente, teria observado aqueles rapazes com maior interesse do que tinha percebido. Paulo voltou mais tarde, já a noite ia alta. Contou-me a minha irmã, que o tinha acompanhado, que Paulo bebeu e dançou toda a noite com outras mulheres hospedadas, também elas no resort. Quando entrou, a “minha” Célia lançou-se nos seus braços e pediu-lhe desculpa. E Paulo, de um modo ternurento, decidiu perdoar. Sentou-a no seu colo, afagou-lhe o cabelo como se faz a uma criança. Célia prometeu portar-se melhor. Paulo sossegou. Fizeram amor. Mais tarde, enquanto ambos dormiam, de mãos entrelaçadas, eu conversava com a minha irmã sobre o que se passara. Eu acreditava que tudo estava bem. Tinha sido apenas um pequeno incidente que fora ultrapassado pelo amor dos dois. A minha irmã apresentava uma posição mais cética. Começava a não gostar muito de Paulo e de algumas atitudes dele. Penso que não me terá contado tudo o que ele fez durante essa noite. Apenas me disse que ele cobrava a Célia o que ele não era capaz de dar…
O tempo deu razão à minha irmã. O “pequeno” incidente na lua-de-mel tornou-se mais e mais frequente ao longo daqueles dois anos de casamento. Tão frequente que só não era diário porque havia alturas em que o Paulo saía de casa e só voltava 4 ou 5 dias depois. Normalmente o tempo suficiente para as nódoas negras que ele tinha infligido à “minha” Célia começarem a desaparecer. Vinha sempre a sentir-se um farrapo. Chorava. Dizia que a amava…e Célia perdoava e perdoava e perdoava. E eu também perdoava. Porque afinal eu era o símbolo daquela união, daquele amor que outrora, supostamente, existira. Eu queria acreditar que Célia poderia não olhar para os homens na rua como olhava, provocando-os. Eu queria acreditar que Célia poderia perder menos tempo no trânsito e chegar a horas a casa. Eu queria acreditar que Célia não precisava de sair com as amigas, de falar com as amigas. Eu queria acreditar que Célia não precisava de nada disso porque, afinal, ela tinha o Paulo. Nós tínhamos o Paulo e isso bastava para sermos felizes. Ou não bastava?!
A “minha” Célia foi perdendo o brilho que a caracterizava. O olhar, outrora sonhador e cintilante, era agora baço. A pele era macilenta. O rosto e a sua expressão perderam qualquer sinal de vida. Pensou que se deixasse de viver, e apenas existisse, os seus problemas com Paulo desapareceriam. Também eu fui perdendo o brilho. Perdi dois dos cinco diamantes que me faziam tão bonita. E os problemas não desapareceram. Por mais que Célia tentasse, havia sempre algo que ela fazia que aborrecia Paulo, que o irritava e que o levava à violência. Há muito que Paulo tinha passado da violência verbal à violência física. As nódoas negras cobriam-lhe o corpo. A cara não. Essa ele queria sempre bonita e sorridente para ele…
 Nada disto era o que tinha sonhado para mim. Continuava a gostar da “minha” Célia apesar de ficar um pouco zangada com ela. Como era possível ela não se revoltar? Como era possível ela suportar tanto em nome de um amor que há muito tinha desaparecido? A minha irmã foi ficando cada vez mais calada e sombria. Também ela me confidenciava que não era aquela a vida que tinha projetado para ela…não gostava de Paulo. Penso que nunca terá gostado. Minha irmã sempre foi mais perspicaz que eu…
Naquela noite Paulo chegou já com algum excesso de álcool. Implicou com a sopa que não era do gosto dele. Partiu o prato que tinha o arroz com a carne porque ninguém poderia comer algo tão salgado. Decidiu ir dormir. A zanga maior rebentou porque ele encontrou a camisa que tinha usado no dia anterior ainda em cima da cadeira. E mais uma vez gritou e levantou a mão. Mas a “minha” Célia nesse dia não suportou mais. Olhou-o diretamente nos olhos, desafiadora e disse-lhe que se ele lhe tocasse ela o mataria. E disse aquilo com tanta veemência, com tanta verdade na voz que todos (o Paulo, eu e a minha irmã) acreditámos que ela poria em prática as suas palavras com as próprias mãos se necessário fosse. Célia tinha atingido o ponto de rutura. A raiva pode muito e naquele momento pôde imenso. Paulo percebeu isso…e deixou-a ir. Célia libertou-se nessa noite daquele casamento que a tinha quase destruído para nunca mais voltar.
 E eu? Eu fiquei esquecida numa caixa, numa gaveta, no fundo de uma cómoda durante muitos anos. Tinha por companhia apenas a minha irmã. Paulo, num gesto de raiva, tinha-a lançado à cara de Célia no dia do divórcio. A “minha” Célia guardou as duas, lá bem no fundo da gaveta, para nunca mais olhar para nós. Nós éramos as testemunhas vivas do seu calvário. Nada disto tinha sido o meu sonho…nada tinha corrido bem.
Alguns anos mais tarde saímos ambas da gaveta. Fomos levadas de um modo negligente num reles lenço de papel…decididamente a “minha” Célia só me trazia dissabores. Chegámos a uma loja muito bonita, cheia de luzes…fomos vendidas… Doeu-me a separação da “minha” Célia, ainda que entendesse o porquê. Mais tarde eu, a minha irmã e mais uns quantos amigos de ouro que andavam por aquela caixa fomos fundidos. Hoje tornei-me parte de um fantástico anel. A minha irmã transformou-se nuns brincos que acompanham o anel. E estamos numa montra em todo o nosso esplendor, à espera de sermos levados por alguém…

Hoje chegou uma mulher para nos experimentar…linda, lembra-me vagamente uma pessoa que conheci. Uma mulher com um passo determinado, apesar do corpo franzino, uma voz e um olhar seguros. Um belo cabelo castanho. Quando ela me colocou no dedo reconheci aquela mão e aqueles dedos finos. Percebi que ela tinha gostado de mim…a “minha” Célia tinha-me reencontrado. Adquiriu-nos. De facto tínhamo-nos tornados em belas joias. Saímos dali já no dedo e nas orelhas de Célia com a certeza que esta nova vida seria bem melhor que a nossa vida enquanto alianças. E foi. Mas isso…isso é toda uma outra história…