terça-feira, 27 de junho de 2017

"Renascer das Cinzas" (Texto publicado na Revista "Capazes")

Todos os dias me têm servido como prato principal, ao almoço e ao jantar, o drama de Pedrógão. E o facto é que, entre o almoço e o jantar, poderia ter algum descanso mas tenho o péssimo hábito de circular pelas redes sociais! Aí recebo mais um prato cheio de drama. E tenho a dizer uma coisa: estou a ficar saturada deste tema! Não comecem a puxar já pelas foices e pelas catanas, não me guilhotinem sem mais apelos! Ofereçam-me um pouco do vosso tempo, permitam-se ler a minha explicação sobre esta “gastura” e depois então, se acharem por bem…puxem das catanas!!
O incêndio de Pedrógão, e pelos vistos, até o de Góis, estão finalmente extintos. Contudo sabemos que o tema, esse, durará, por mais umas boas semanas. Como já referi antes (noutra crónica), ouviremos falar desta verdadeira tragédia, até que uma outra, maior ou de iguais proporções, chegue até nós. E acreditem que, infelizmente, chegará, mais dia, menos dia, a notícia de um acidente, de um massacre, de algo que irá fazer a nossa atenção finalmente, transferir-se para outra situação. O que me dá enorme “gastura” (como quem diz, enorme irritação), obviamente, não é o drama em si mas a cobertura que os média portugueses têm feito desta verdadeira tragédia. Honra lhes seja feita, eles conseguem encontrar temas onde já não há mais nada a dizer ou a fazer. Este aproveitar da desgraça alheia incomoda-me de um modo difícil de explicar. Nem irei falar do horror que vimos nas televisões durante o fim-de-semana. Quero acreditar que estar presente naquele verdadeiro palco de guerra retira o discernimento a qualquer um. Quero acreditar que, na ânsia de querer mostrar a dimensão do acontecimento se procurem as imagens mais chocantes, as que mais revelam sobre tudo o que se passou. Sobre o mau gosto de se fazer filmar junto a cadáveres (como no caso da Judite de Sousa) nem me vou pronunciar. É demasiado mau sequer para ser referido (nesse triste momento da jornalista apenas me alegra perceber que vários telespetadores apresentaram queixa sobre essa total falta de bom senso). Contudo, passado este primeiro momento de horror, em que a todos faltou o bom senso, questiono: haveria necessidade de continuar a mostrar certas imagens? Haveria necessidade de mostrar os corpos de animais calcinados, obrigando-nos a fazer a analogia com corpos humanos? Haverá necessidade de conhecer e expor o rosto das pessoas que faleceram? Essa exposição irá auxiliar os que sobreviveram a superar a dor? Haverá necessidade de continuar a procurar atores para ilustrar toda esta tragédia? A minha única explicação é que estes jornalistas procuram, em vez de nos oferecer verdadeiras notícias úteis, oferecer-nos, ao jantar, verdadeiras novelas. Tudo começa quando nos são apresentadas as personagens. Procura-se aquele que tenha perdido família, a casa, de preferência, tudo. Coloca-se o/ a senhor/ senhora, que ainda não tem uma noção clara de tudo o que aconteceu, em frente a uma câmara (de filmar ou fotográfica, tanto dá). E explora-se a desgraça alheia. Hoje vi o seguinte título “Perdeu o ouro e o vestido de noiva!” juntamente com a foto de uma pobre senhora que, provavelmente, ainda não caiu em si, com toda esta desgraça. Certo, era no “Observador”. Vale o que vale. Mas, ainda assim, será normal este explorar da miséria? Assumo que abri o artigo. Queria ver onde chegaria a informação. E aí pude ler que ardeu um vestido de noiva, que se guardava numa mala, assim como a cadeira de rodas do filho, que falecera há 6 anos (pormenores que sim, puxam ao sentimento. Seriam eles necessários? Não…) Ao voltar a sua casa, depois de extinto o fogo (uma casa que escapou ao incêndio) descobriu que lhe tinham roubado uma caixa com todas as suas peças de ouro. Esta exploração do sofrimento da “personagem” com vista a provocar a empatia no espetador é totalmente característico das novelas. Procuram a emoção e a comoção do espetador. De notícia, apenas teremos o facto de existirem amigos do alheio mal formados que se aproveitam da desgraça alheia! Todo o resto é folclore de mau gosto.
 Como é óbvio, as novelas, cedo ou tarde, acabam bem. E nós queremos acreditar nisso. E por isso ajudamos da forma que estamos a ajudar. Queremos dar um final feliz a esta novela por demais dramática. Não vou criticar toda a ajuda que tem existido. Não o poderia fazer. Estamos a mostrar que quando nos unimos por uma causa, não movemos uma montanha porque não nos lembrámos disso. Vejo as pessoas preocupadas com o outro, com os animais, com a tentativa de minimizar este horror. Vejo que, pela primeira vez, todos os canais públicos televisivos se uniram por uma causa. Vejo os artistas, que tanta importância têm no publicitar da necessidade de ajudar, a dar a cara por esta causa. Não é o final feliz da novela mas é uma espécie de final de temporada. Nada está terminado, muito fica em aberto, mas há um concluir de alguns aspetos. Incêndio terminado, prejuízos em avaliação… O que há a esperar da nova série? Aquilo que já se tem prenunciado. Como disse uma amiga minha de Castanheira de Pera, agora é preciso é “arregaçar as mangas”. Tentar apagar os vestígios da tragédia. A reconstrução das casas, a reconstrução das famílias, tanto quanto possível. A paisagem, essa, levará mais umas “quantas séries” para se renovar, para voltar à sua beleza original.

No fundo, o que é preciso é dar vida ao verbo “esperançar” – esperar que a partir desta tragédia venha o melhor: melhor ordenamento da floresta, maiores cuidados na plantação de árvores (o que se planta, como se planta). Esperar que, por difícil que seja, as vítimas se consigam reerguer deste horror vivido. Tudo isto só será possível de adquirir com a esperança, tão característica dos portugueses. O que podemos fazer hoje? Esperançar. Esperançar num futuro menos negro. Esperançar que a nossa classe jornalística se torne menos sensacionalista, mais verdadeira. O que nos resta neste momento é apenas isto: esperançar que venha algo de bom. Apenas…esperançar.
Texto publicado na revista "Capazes"

Porque faço (24 de junho) hoje 40 mais 1 entrei num daqueles meus momentos de autoanálise. E dei por mim a pensar: “caramba, que esta ideia de que as mulheres se sentem mulheres de bem com a vida aos 40, é mesmo verdade!” Tenho dito várias vezes: falta-me muito pouco para ser feliz. Um “nadinha de nada” e seria totalmente feliz! E não estou a mentir. Sinto-me como nunca me senti! Tenho dito várias vezes, ultimamente, “sinto-me bem! Sinto-me em paz!”
Sempre ouvi que os melhores anos de uma mulher eram os 30. Que era nessa altura que ela atingia a maturidade, atingia grande parte dos seus objetivos, deixava para trás a jovem insegura e apresentava à sociedade uma mulher sábia, calma, estável a todos os níveis, apresentando-se como um porto de abrigo para muitos. Ora, a minha entrada nos 30 foi do mais conturbada. Depois de ter alcançado alguma estabilidade a nível profissional e amoroso (os saudosos anos de Coimbra!), tudo se desmoronou nessa entrada nos 30. Como tal, a senhora que eu achava que deveria ser nessa década não existiu. Muito pelo contrário. Os 30 deram lugar, novamente, a uma “jovem” com vontade de viver a vida e aproveitar tudo o que o mundo lhe poderia dar. Não me queixo até porque não deixaria de viver nem um segundo. Nem os anos de Coimbra, que terminaram de um modo menos simpático, nem os anos que se seguiram. Contudo, à conta desta situação, acabei por fugir ao padrão e não me tornar na “senhora” que pretendia ser quando tinha 18 anos. Com 18 anos perspetivava-me, aos 30, com uma família, uma casa, um carro e um cão. Um sonho um pouquinho pequeno-burguês, é um facto. Como disse, a vida arrastou-me para longe desses sonhos tornando-me uma senhora de 30 com características bem longe desse cliché. Não poderei dizer que era a tal senhora de 30 segura de si, calma e com estabilidade. Pelo contrário. As situações pelas quais passei no início dessa década tornaram-me até um nadinha insegura e um pouco zangada com o mundo.
E eis que passam dez anos e entro na década dos 40. Relembro que, quando era criança considerava ter 40 anos como estar à beira da velhice. Muitas vezes ouvia falar o meu pai sobre alguém que tinha falecido com 40 ou 50 anos e ele dizia: “Coitado, morreu tão novo!”. E não ironizo quando digo que na altura pensava “Como, novo?!” Para os brasileiros essa é a “idade da loba”, idade em que se atinge a maturidade e nos tornamos donas do nosso nariz.
O facto é que estou a fazer 41 anos e finalmente sinto-me muito bem na minha pele. Por fim sinto que não precisava de muito mais para ser feliz. Assim, num ápice, penso em duas “coisitas”. Vou fazer 41, já não tenho a pele fabulosa que tinha, manchas e rugas fazem parte do meu rosto e aceito-as. Aliás, finalmente, aceito-me como sou. Sim, tenho uns quilos a mais. Sim, tenho alguma celulite. Mas tenho a dizer em minha defesa que pratico algum ginásio: orgulhosamente faço aulas de Pump e Jump! Logo, o que temos é o que dá para ter! Portanto…gosto de mim!
 Para além do lado físico, encontrei forma de equilibrar o meu espírito. Faço coisas que me agradam. É um facto que saio menos à noite. Mas ocupo mais o meu tempo a alimentar a alma. Como sempre, leio. Sempre gostei, sempre me fez bem. Encontrei, também, uma forma de me encontrar, de me analisar e que me dá paz: escrever. Vejo séries de qualidade. Sinto que faço do meu tempo um tempo de qualidade. No fundo, aprendi a gostar da minha própria companhia. Por isso, quando procuro a companhia de alguém é porque quero e não porque necessito. E acho que isso torna qualquer pessoa bem mais interessante. Ter chegado aos 40 anos (mais um) também me mostrou “quem sim e quem não”. Passei a fase de achar que tenho de gostar da família só porque é família. Gosto daquela família que, mais que os laços de sangue, estreitou os laços da amizade e do companheirismo. O mesmo aconteceu com os amigos. Neste momento sei quais são aqueles com que conto. Sei quem são os verdadeiros. Tenho certeza que os que hoje são intitulados de amigos o serão daqui 20 anos. Não quero com isto dizer que o meu grupo de amigos está fechado. Muito pelo contrário. Continuo a conhecer muita gente e a fazer amigos a sério (essa será uma das partes boas da vida cigana que tenho vivido). Por outro lado, os meus 40 mais um (penso que muito ajudados por esta vida que me tem obrigado a mudar de cidade uma vez por ano, quando não mais vezes) tornaram-me uma pessoa mais autêntica. Conhecer tantas vezes cidades diferentes e novos colegas retiraram qualquer comportamento de “bem parecer” que poderia existir em mim. Não faço fretes. Sou o que sou. Ou gostam…ou seguem caminho. Simplesmente não tenho mais paciência para aguentar o que não gosto, o que me incomoda, ou, pior, o que me diminui. Passei a viver mais para mim e isso tornou-me mais disponível para os outros. Embora pareça um contrassenso, a verdade é que, ao fazer e viver como quero fiquei mais disponível para ouvir os outros. O lugar ocupado por ressentimentos de falta de tempo e preocupações banais com as pessoas e as suas situações passou a ser ocupado por coisas que me fazem feliz…deste modo, abriu-se espaço para sentimentos bons para com o outro. Assumo que também libertei o espaço das preocupações com o que poderia acontecer no futuro. O que vier, virá por bem…preocupar-me antes não me servia de nada e apenas me deixava ansiosa. Logo, menos preocupações, menos ansiedade, mais bem- estar. Essa terá sido uma das melhores coisas que os 40 anos me trouxeram: a capacidade de relativizar. E por isso relativizo o não ter atingido as metas que tracei quando tinha 18 anos. Percebi que não preciso de metade das coisas que pensava que precisaria para ser feliz. Aliás, percebi que preciso de muito pouco para o ser.

 Fazendo um balanço verifico que: 1. pouco ou nada possuo de meu. 2. Não tenho enormes expetativas em relação ao futuro. 3. Aguardo o que o dia-a-dia me traz. 4. Não sei como será o dia de amanhã e não me preocupo muito com isso. Sou feliz. 5.Mantenho alguns sonhos (aquela parte que me falta para ser mesmo, mesmo feliz). E isso basta-me. Como diria Pessoa, na voz de Álvaro de Campos  “Não sou nada/ Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.  É isso!...E hoje faço 40+1 …Parabéns a mim!

domingo, 18 de junho de 2017


“O Inferno Somos Nós”
Ainda estava a tentar sintonizar-me com o mundo, olhos mal abertos, espírito pouco acordado, quando ouço nas notícias a atualização do drama de Pedrógão Grande. E íamos, a esta hora, em 43 mortos (Na última atualização que ouvi íamos em 58 mortos…). Que informação terrível para se ter logo pela manhã. Custa tanto processar uma informação destas que cheguei a pensar “não terei acordado e estarei a ter um pesadelo?”
Mas o facto é que não é pesadelo. O facto é que ontem deflagrou um incêndio com tal violência que ceifou a vida a 58 pessoas, existindo outras tantas (e veremos se este número não aumenta) feridas.
Chora-me a alma pelas vidas que foram interrompidas, por aquele pedaço de terra magnífico que sucumbiu às chamas, por tudo o que num ápice deixou de ser.
A minha vida de cigana de professora contratada tem-me levado a trabalhar e a conhecer muitos locais de que apenas tinha ouvido falar. Um desses locais foi Castanheira de Pera na zona do Pinhal Norte, como se costuma referenciar. Para mim, e à primeira vista, mais não era do que uma minúscula vila perdida no meio do Pinhal. Mas rapidamente se aprende a gostar dessa zona. Rapidamente se percebe que Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, são zonas paradisíacas, enquadradas por um verde maravilhoso, que cria paisagens de sonho. Num mês criei um vínculo com a terra e as suas gentes, que se revelaram autênticas, que ainda hoje persiste. Por isso, esta tragédia me marca como ferro em brasa e me deixa a alma e o coração em cinzas, tal como se encontra a paisagem que rapidamente desapareceu à frente dos nossos olhos.
E nós? O que fazemos? Assistimos impotentes a mais uma tragédia. Enquanto jantávamos, ouvíamos o que se passava. Quiçá até nos teremos comovido e soltado uma ou outra lágrima. Repetimos frases como “Meu Deus!”, “Que horror!”, “Morte a quem terá provocado esses incêndios!” (Não conseguimos acreditar que tudo se deve a uma trovoada seca! Precisamos de culpados!) E, com essas palavras e a nossa revolta, sentimo-nos um pouco reconfortados, percebemos que pouco podemos fazer e dizemos “passa-me o molho para as batatas, se faz favor!”
Sentimos profundamente as perdas de Pedrógão. Tal como ficámos indignados e tristes com as mortes de Londres (curiosamente, e coincidência macabra, também uma tragédia provocada pelo fogo). Bradamos contra o DAESH sempre que temos conhecimento de mais um atentado e de mais uma vez, mortes de inocentes. Escrevemos nas redes sociais o nosso lamento. Juntámos à nossa foto de perfil um “Je suis…qualquer coisa”. Mas o certo é que, depois disto tudo, iremos virar a cara e dizer “passa-me o molho para as batatas”.
Estamos demasiado habituados ao sofrimento alheio. Sentimos uma piedadezinha ao mesmo tempo que, bem lá no fundo, nos regozijamos por a tragédia ser “lá longe”. Por vezes, mais perto, como hoje, mas continua a ser “lá”…
O imenso sofrimento a que assistimos, muitas vezes em direto, retirou-nos a capacidade de sentir pouco mais que uma empatia momentânea com o sofrimento alheio.
Infelizmente a tragédia aconteceu. Numa proporção que nunca me lembro de ter acontecido. Lembro bem quando a minha serra, a da Estrela, ardeu. Lembro da tristeza imensa de ver desaparecer aquilo que era o nosso orgulho. Apenas terei sentido uma parte do desespero das gentes de Pedrógão. Tenho certeza disso. Mas espero que esta tragédia não venha a cair no famoso “passa-me o molho para as batatas, se faz favor”. Mais que encontrar culpados, se é que os há, é necessário que a tragédia traga como resultados, e mais uma vez, a importante questão da limpeza das matas. Não encontraremos gente disposta a fazê-lo? Mais que encontrar culpados, temos de deixar de pensar no molho das batatas e reunirmo-nos em volta desta dor e tentar criar uma onda de apoio a quem tudo perdeu…provavelmente até a esperança.
O dia amanheceu sombrio. Ligeiramente mais fresco…parece-me. Escuro… o fumo e o seu cheiro chegam até aqui, à Covilhã…Fica a esperança que os deuses tenham alguma comiseração pelas gentes que tanto sofreram e pelos bombeiros que continuam no combate às chamas e nos enviem um dia mais fresco e, quem sabe, com alguma chuva.

Concluo, no fim, que “o inferno somos nós”. Somos nós quando vemos tragédias acontecerem uma e outra vez e nada fazemos: não exigimos melhorias, não exigimos alteração de medidas. Não questionamos nem exigimos coisa nenhuma…Que ordenamento florestal temos nós para se dar uma tragédia destas? Sentimos que a nossa obrigação é sentir pena do que aconteceu, sentimos como obrigação ajudar com algum dinheiro e algum apoio às vítimas. Deste modo, sentimos que somos bons samaritanos e que ajudámos o próximo. Aligeiramos a nossa consciência com medidas mais ou menos fáceis. Não exigimos um mundo melhor e seguimos em frente aguardando nova tragédia, que sabemos que, cedo ou tarde, chegará, apagando da nossa consciência a tragédia última. Por isso, mais que as chamas, reafirmo “o inferno somos nós”, na nossa inatividade.     

domingo, 11 de junho de 2017

Apesar de ser um corpinho com sangue 100% português, com pai e mãe saídos da Beira, quis o destino que viesse a abrir os olhos, pela primeira vez, em território francês. E por lá permaneci durante alguns anos. Ainda na minha infância, bem jovem, vim viver para Portugal. Assumo que o Portugal dos anos 80 era bem diferente do país que eu conhecia. Em muitos aspetos considero que sofri um choque cultural. Basta dizer, a título de exemplo que, quando vinha de férias, só achava que estava verdadeiramente em Portugal quando via as estradas de terra batida carregadas de pó! Diga-se, em abono da verdade, que vinha passar férias para o interior de Portugal. Um interior que ainda hoje possui diferenças flagrantes com o litoral. Mas, o certo é que foi para aqui que vim viver e foi a esta zona do país que tive de me adaptar. Sobre as grandes diferenças encontradas falarei outro dia. Do que quero falar hoje é de um dos hábitos mais comuns que este país apresentava e que muito me agradou:
 O hábito das pessoas passarem na rua e de se cumprimentarem!!!!
Para quem vinha de uma cidade com uma dimensão considerável em que os cidadãos se comportavam de forma mais fria e menos humana, esse hábito foi para mim algo de magnífico. E, como seria de esperar de uma conversadora como eu, abracei este hábito como se o tivesse tido desde o primeiro dia do nascimento e passei a dizer “Bom dia” ou “Bom dia, como está?” (na versão que utilizava para as pessoas que me pareciam mais idosas – o que, na época, era toda e qualquer pessoa que tivesse ultrapassado os 40 anos…) a toda a gente que se cruzava comigo no meu caminho para a escola. E ainda eram algumas pessoas, tendo em conta que caminhava uns bons 10 a 15 minutos!
Foi nessas minhas caminhadas que conheci aquele que viria a batizar de “Monsieur Bonjour” (A língua francesa ainda estava muito marcada na minha memória…). Monsieur Bonjour era um senhor com quem me cruzava todos os dias de manhã. E todos os dias o senhor, que tinha alguma dificuldade em caminhar, parava, quando se apercebia que eu vinha lá, preparando o seu “Bom dia”. Todos os dias, durante muitos anos, este cenário se desenrolou da mesma forma. Por isso o batizei como Mr. Bonjour (Sr. Bom dia). Todos os dias ficava com a sensação que aquele bom dia era importante para ele. Como caracterizar o Monsieur Bonjour?
Poderia dizer que era uma excelente pessoa. Que trazia rebuçados nos bolsos para as crianças…Mas não era o caso. Era um homem que parecia zangado com a vida, dono de um olhar sem brilho… Quando atuávamos em bando, correndo pelas ruas, perturbando simultaneamente a paz das ruas e o lento caminhar de Mr. Bonjour não raras vezes éramos brindados com um chorrilho de asneiras… Era um solitário…talvez o olhar vazio se devesse a essa solidão. Penso que seria viúvo…nunca lhe conheci família…nem sequer um animal de companhia. Vivia sozinho, num casebre tão inseguro nos seus alicerces quanto o sr. Bonjour nas suas pernas…Casa e dono apresentavam o mesmo ar miserável e abandonado.
 Apesar de pouco simpático no geral, sempre senti que Mr. Bonjour aguardava pelo meu “Bom dia”. E todos os dias eu o fazia. Porquê? Porque esse hábito se tinha enraizado em mim. Tinham-me dito que devia cumprimentar as pessoas quando passava por elas e eu cumpria religiosamente – Acho que jogava na altura mais pelas regras do que propriamente agora. Sendo a criança que era, não penso que fosse por achar que ia dar um sentido diferente ao seu dia…Não pensava sobre isso…era uma criança.
 Contudo, hoje, olhando para trás, sei que, com a inocência da criança que eu era na época, tornei o mundo do Mr. Bonjour mais simpático e mais aceitável. Dei-lhe uma outra luz (pelo menos nos ínfimos momentos entre o passar por ele, olhar para ele, dizer bom dia e ouvir a resposta). Ofereci-lhe o olhar de um ser humano, tornei-o menos transparente (alcoólico e zangado com a vida, tinha tendência a ser ignorado pelas “pessoas de bem”). Eu não desviei o olhar como grande parte das pessoas faziam e fi-lo merecedor de um bom dia. Sim, foi pouco. Não foi nada. Mas sempre senti que, para ele, aquele bom dia vindo de uma criança de pouco mais de 7 anos, era uma esperança no futuro e na humanidade. Sempre senti que o Mr. Bonjour aguardava ansiosamente por esse bom dia. Hoje percebo que o tornei mais pessoa e menos coisa. Mostrei-lhe que era um homem digno do olhar de uma criança, para além do idoso consumido pelo álcool e pela amargura. Sem querer, sem pensar nisso, agi corretamente…. E hoje, quando penso no assunto, fico satisfeita, por, na minha inocência, ter abraçado um costume tão nosso e assim ter tornado, ainda que de uma forma tão ténue, a vida do Sr. Bonjour mais doce.
Fui estudar para fora e deixei de fazer aquele percurso a pé. Deixei de ver o Mr. Bonjour. Não sei o que foi feito dele…sei que o casebre dele já não existe. Foi destruído e deu lugar a um estacionamento para um carro…Em tempos ouvi que o tinham levado para um lar. Sei que deixei de o ver nas ruas. Sei que a casa foi cedendo, lentamente à passagem do tempo e ao abandono. Àquele a quem tantas vezes disse bom dia não foi possível dizer até já… nem adeus… À época em que tudo isto se passou não tenho grandes dúvidas que o Sr. Bonjour já terá abandonado este mundo. O que desejo? Desejo que naquela nova casa que ele descobriu (o lar), quando abandonou as ruas da minha “vilinha”, possa ter encontrado alguém que, todos os dias, ao passar por ele, lhe dissesse “bom dia, como está?”. Espero que tenha encontrado por lá pessoas que o não “coisificassem” e que o tivessem tratado como uma pessoa, para além do olhar frio e do mau feitio. Desejo que tivesse encontrado alguém que lhe adoçasse o olhar.

Gosto de pensar assim. Gosto de pensar que, na hora em que abandonou este mundo, seguiu para o outro mundo uma alma bem mais feliz. E gosto de pensar que, na memória dele terá ficado aquela menina pequenina e rabina que não se assustou com os seus maus modos e que tantas vezes lhe disse “bom dia!” 

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Aqui há uns tempos fui a um workshop de escrita criativa do Pedro Chagas Freitas. Já afirmei mais do que uma vez que não é um dos meus escritores preferidos mas a verdade é que o workshop foi muito interessante, sendo ele uma pessoa cativante e fácil de ouvir. E a verdade é que, não gostando de tudo o que escreve, gosto de várias coisas e até posso dizer que me identifico com algumas. Uma das frases que retive do escritor em causa é a já muito lida “Não é parar que é morrer; é ir andando”. Não poderia concordar mais com essa frase. No fundo esta máxima acaba por descrever bem a minha forma de ser e estar na vida. Gosto de pessoas sonhadoras. Pessoas que possuem mais a cabeça nas nuvens que os pés na terra. Pessoas que acreditam que a vida pode e deve ser melhor que a que têm neste momento. Pessoas que têm objetivos, que não se acomodam e que lutam por eles. Pessoas que procuram fugir das rotinas. Pessoas que vão de peito aberto para a guerra porque acreditam na sua luta pessoal. Pessoas que acreditam que as hipóteses são mínimas mas que, ainda assim, têm fé nas ínfimas possibilidades que se apresentam e creem que elas são razão suficiente para seguir em frente e atingir um resultado positivo.
Por isso abomino pessoas acomodadas. Pessoas que vivem um dia atrás do outro sem esperar nada da vida. O típico “vamos andando”. Pessoas que se limitam a viver…ou, diria melhor, a sobreviver. O ir andando mata devagarinho, retira gostos, vontades e cores. O mundo passa a ser cinzento. Como se uma neblina cobrisse tudo o que se encontra nele. Os raios de luz passam a ser cada vez menos na vida dessas pessoas que “vão andando”, acumulando dias sem cor. Os dias, esses, mais não são que uma longa sucessão de “coisas poucas” ou de nadas. Uma linha contínua, sem altos e baixos. E por não haver luz nem cor são pessoas que começam a ver o mundo a preto e branco. Provavelmente será essa uma das razões pelas quais se tornam intolerantes a tudo o que possa soar a boa disposição, a cor, a vida.
É verdade que viver a 100%, sem medos, sem rotinas, sem “vamos andando”, lutando para ser feliz, é difícil. Obriga-nos, constantemente, a sair da caixa. Obriga-nos a desafiar o sentimento de aconchego e bem-estar que as rotinas nos dão. Deixa-nos muitas vezes com a sensação de estar próximo do precipício. Por vezes, viver desta forma até custa e dói. Avançamos com tudo para a guerra mas vamos de peito aberto. E por isso somos feridos. Feridas imensas que custam a passar mas…entre o nunca ter vivido estas situações ou vivê-las e ficar ferido, qual será a melhor opção? Na forma como eu vejo as coisas, há que vivê-las e vivê-las a 100%. Há que lutar. Há que expor o corpo às balas, esperando sempre o melhor. E se o melhor não chegar, sentar, lamber as feridas, curá-las e voltar para a guerra! Penso que só assim a vida poderá trazer coisas coloridas, intensas e verdadeiras. E são esses momentos intensos e verdadeiros que fazem a vida valer a pena e que lhe dão cor.
Li uma vez um artigo que referia os cinco arrependimentos mais comuns das pessoas à beira da morte. Lembro que grande parte das pessoas se arrependia de não ter aproveitado a vida da forma que queria, tendo vivido da forma que os outros queriam. Passavam também por não se terem permitido serem felizes (porque, muitas vezes, procuramos fazer felizes os outros esquecendo-nos de nós próprios).
Por isso, tiro o chapéu aos sonhadores! A quem tem a força de vontade de jogar tudo para o alto e de aproveitar a vida como bem lhe apetece. A quem tem coragem de desafiar as convenções, desafiar as leis do bom senso. A quem, contra todas as evidências, segue em frente com o firme propósito de procurar a felicidade. A quem não tem medo da guerra. A quem não tem medo de ser ferido. A quem não tem medo de ser apontado pelas pessoas cinzentas ditadoras de regras. A quem procura ser feliz a todo o custo. A quem sabe que a vida é um bem demasiado precioso para a deixar seguir entre lentas rotinas e episódios mornos. A quem sonha e abraça o mundo com tudo o que ele tem para lhes oferecer e consome a vida à boca cheia!

Tiro-lhes o chapéu e afirmo que são eles quem merece uma vida cheia e transbordante porque lutaram por ela! Porque não se limitaram a sobreviver. A eles apresento todo o meu respeito. O mundo precisa de mais gente assim. Sonhadores precisam-se!!!