domingo, 21 de janeiro de 2018


E para hoje a proposta é, novamente, um conto. A fotografia que ilustra o conto é do fotógrafo David Miguel Oliveira Costa. Enjoy

Reencontros

Planearam encontrar-se no parque. Reencontrar-se seria um termo mais adequado. Decorridos 10 anos sem as suas vidas se terem cruzado, decidiram eles próprios forçar o destino. Não poderia dizer que havia dez anos que não sabiam um do outro. Nos tempos que correm isso é quase impossível…
A verdade é que depois da separação decorreram longos meses, que passaram a anos, sem efetivamente saberem um do outro. Por considerarem que seria mais fácil fazer o luto da relação, por considerarem que seria mais simples seguir em frente, por considerarem que, desta forma, poderiam “inventar” com maior facilidade uma nova vida sem a presença daquele outro que por tanto tempo tinha sido o companheiro dos momentos bons e dos menos bons, decidiram não se procurarem. Foram apagados os números de telefone à medida que se procurava apagar a presença daquela pessoa na vida de cada um. Foram arrumadas num canto escuro da memória as lembranças de tempos mais felizes; foram devidamente arquivadas as fotografias que relembravam que aquela pessoa tinha feito parte da vida do outro. Tudo foi feito para que aquele relacionamento passasse a fazer parte de um passado esquecido e dificilmente recordado.
Contudo…o tempo passou e fez o que de melhor ele sabe fazer. Deixou cair uma leve cortina de esquecimento sobre os momentos menos bons, curou as feridas que se passeavam por aqueles corpo e mente e suavizou as cicatrizes que tinham ficado dos momentos menos agradáveis da vida deles a dois. O tempo passou, amenizou tudo o que de negativo existia naquela relação que tinha falhado e deixou armazenado, num espaço próprio, apenas aquilo que é bom de guardar e recordar. E foi precisamente nesse momento que nasceu a curiosidade. Saber que caminhos teriam sido trilhados por cada um, que vida tinha existido na vida de um sem o outro, que bons momentos tinham sido capturados para a eternidade e sim, saber quem seria o ser que partilharia o lugar deixado vago anos antes. Nos tempos que correm, alimentar essa curiosidade é extremamente fácil. E foi assim que, decorridos alguns anos votados ao esquecimento de uma pessoa, a curiosidade levou a melhor e se efetuou o primeiro passo para a reaproximação: Pesquisar as redes sociais, encontrar, como se de um estranho se tratasse, aquela pessoa que fora parte integrante da sua vida. Ambos percorreram esse caminho de investigação pelas redes sociais. Quando as pessoas foram muito próximas fica a sensação que ficam ligadas, para sempre, por um fio invisível que permite, a seu tempo, uma ténue comunicação. E foi esse fio, tão leve como o fio com que a aranha constrói a sua teia que levou a que no momento em que ela cedeu à curiosidade de espreitar a vida dele nas redes sociais, também ele sentiu a mesma vontade de procurar a sua página e de a analisar.
Num primeiro momento a sensação foi de estranheza. Tentar atualizar anos de silêncios não é fácil. Ela percebeu que ele continuava a viver na mesma cidade. Do homem que ela conhecera, não restava muito. O ar travesso dera lugar a um ar mais sério, compenetrado, de quem assume as suas responsabilidades para com a vida. Mantinha a boa forma física, provavelmente fruto da prática da nova febre que perpassava pelo país: o running. Afinal de contas, ele sempre fora um desportista. Pelas fotografias a que tinha acesso lia-se a sua vida: provavelmente um emprego sério, que lhe permitia receber acima da média, férias habitualmente na praia, algumas viagens para fora do país (nada de locais muito exóticos, maioritariamente, Europa), uma família (mulher e filho). Não o conhecesse tão bem e pensaria que se tinha dado bem na vida. Contudo, ela conhecia aqueles olhos e aquele sorriso melhor que os seus próprios olhos e o seu próprio sorriso. E percebia que aquele olhar apresentava uma névoa…algo, no seu caminho, lhe tinha retirado o brilhozinho nos olhos e o sorriso travesso. Aquela imagem que se apresentava era uma visão mais grave e severa do homem que ela conhecera.
E ele, o que via? Via uma mulher que apesar de apresentar um ar mais maduro, algumas rugas que ele não conhecia, se mantinha igual a si própria. Mantinha aquele ar de desafio para com a vida que sempre lhe conhecera, um certo ar de menina admirada com o mundo e com tudo o que a rodeia. Encontrara o amor outra vez…pelo menos as fotografias assim o indicavam, nos últimos 3 anos… Talvez por continuar a parecer tanto com a mulher que ele amara, 10 anos antes, não conseguiu controlar uma pequena pontada daquilo que parecia ser ciúme. Afinal, aquela ainda parecia a miúda dele! E terá sido por isso que ele decidiu lançar um tímido “olá”, aguardando a sua resposta, num misto de receio e esperança. A resposta (um “olá, és mesmo tu?”) só chegou dois dias depois. Dois intermináveis dias em que ela se questionou se deveria ou não responder àquele singelo “olá”. A vontade e a curiosidade levaram a melhor, e ela respondeu. Estranharam-se nos primeiros 5 minutos de conversa. Depois…depois foi como se tivessem aberto as comportas de tudo aquilo que queriam ter dito um ao outro e que calaram por tanto tempo. Perceberam que não se tinham enganado muito quanto às conjeturas que tinham feito sobre a vida de um e outro. Ele casado, a viver a vida que sempre ambicionara para si: pacífica, caseira, sem grandes sonhos mas também sem grandes desgostos. Pai…sempre cultivara essa vontade. “Um miúdo fantástico” –  dizia ele.
E ela? Ela tinha andado meio perdida na vida…como sempre estivera desde que se conhecia por pessoa. Continuou presente, por muitos anos, o receio de se acomodar a uma vida pequeno-burguesa, de viver de rotinas, de estar sempre no mesmo local…até que um dia…há três anos, a profissão a obrigou, finalmente, a ficar efetiva num local. E fazia então três anos que trabalhava no mesmo local…na mesma cidade. Tinha conhecido uma pessoa…e há três anos que estava com ela. Uma pessoa que a entendia, que percebia o seu desejo de independência e liberdade, que a respeitava. Bons companheiros dizia ela…
E as conversas continuaram, recuperando uma ligação que se tinha esbatido mas nunca desaparecido da vida de ambos… Até ao dia em que ele lhe lançou um desafio: “vamos encontrar-nos”. De um modo virtual tinham voltado a fazer parte da vida um do outro. Contavam a sua vida, as suas histórias, partilhavam as preocupações, as vontades, como dois bons velhos companheiros de estrada. Um único tema nunca tinha sido abordado: os dois, enquanto casal. A relação. O porquê de terem falhado, de se terem deixado. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que não existia qualquer possibilidade de se encontrarem. Que, apesar desta recente reaproximação, das horas de conversa, da profunda empatia que continuava a sentir, um encontro físico seria algo demasiado arriscado para o seu bem-estar conseguido a duras penas. E no entanto, como se os dedos fossem dominados por uma força maior, deu por sim a escrever: “Quando?”.
Desde que foi tomada a decisão de se verem até ao momento em que se encontraram no parque, poucos dias decorreram. Chegou o dia e o momento. Apesar de todas as conversas, apesar de se conhecerem há tantos anos, ambos sentiam um nervosismo crescente ao se aproximarem um do outro. Observaram-se longamente. Faltavam as palavras num momento em que a intensidade falava mais alto. Apesar de todas as fotografias que tinham observado minuciosamente, sentiam que se observavam, pela primeira vez, em dez anos. Um e outro viam dançar à sua frente as memórias partilhadas, as expectativas goradas, as alegrias vividas, as tristezas suportadas. Num ápice o passado surgiu-lhes com uma nitidez de contornos que fazia pensar que o mesmo tinha acontecido ontem. Abraçaram-se. Um abraço apertado, carregado de lamentos por tudo o que não se tinha vivido e repleto de promessas do que poderia ser vivido ainda. Falaram durante algum tempo de tudo e nada, como sempre tinha sido apanágio da sua relação. Contudo, aos poucos, as conversas foram ficando mais escassas, instalando-se, aos poucos, o silêncio. E esse silêncio manteve-se durante algum tempo. Não que isso os incomodasse. Sempre tinha sido assim: o silêncio não os incomodava. Comunicavam através dele, através do olhar. E o olhar de ambos dizia o mesmo: “e se não tivessem desistido um do outro, naquela época?”; “Em que momento tinham deixado os egos pessoais se sobreporem ao sentimento que sempre os tinha unido?” E foi nesse silêncio, de mãos dadas, que ambos perceberam que seriam toda a vida o “e se?” um do outro. Perceberam que há sentimentos que nunca morrem e que toda a vida eles se sentiriam unidos por um laço invisível que nunca os deixaria sentirem-se totalmente completos, se separados. Mas perceberam também que ambos tinham trilhado um caminho que não lhes permitia retroceder. Ambos tinham construído uma outra vida, que não contemplava esse passado. E, no mesmo momento em que essas certezas se desenhavam nas suas mentes, de um modo que desafiava a lógica, os corpos aproximaram-se como que impelidos por uma força superior. Os corpos esses, não obedeciam à racionalidade das suas mentes. Tocaram-se. Reconheceram o cheiro um do outro, as suas necessidades e vontades. Por breves momentos foi como se nunca se tivessem separado. Aquela era a outra metade do seu ser. Beijaram-se. Um beijo intenso, repleto de uma saudade escondida, de um sentimento poderoso, de uma vontade de ficar embora já contendo nele o prenúncio da partida. Um beijo de reencontro de bocas, línguas, corpos e vontades mas também um beijo de despedida, selando o acordo tácito que ambos tinham firmado com o olhar. Antes de partirem, ela colocou-lhe uma única questão: “És feliz?” Ele lançou-lhe um último olhar, respondendo com alguma lassitude na voz: “tenho junto a mim o que me faz mais feliz: o meu filho”.

Nunca mais se viram. Não voltaram a contactar pelas redes sociais. Ainda assim, até ao último dos seus dias guardaram, num lugar muito recôndito do coração, a certeza que, naquela tarde e por um momento muito breve, se voltaram a encontrar e voltaram a sentir-se completos.

Sem comentários:

Enviar um comentário