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domingo, 4 de março de 2018
sábado, 3 de março de 2018
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018
Se bem se lembram, tinha criado um desafio a mim própria. Escrever um conto partindo dos versos de uma canção. O conto partiria desses versos procurando contar uma história diferente da mensagem veiculada pela letra da canção inicial. Este é o segundo resultado desse desafio.
Os versos, desta feita, foram retirados do "Espaço Impossível" de Tiago Bettencourt e Mantha, aceitando a proposta do Raul Tomé!
A foto é da autoria do David Costa. Podem visitar o trabalho dele em: http://olhares.sapo.pt/DavidMOCosta/ ou em https://www.instagram.com/david_mo_costa/
Enjoy!
“…queres o espaço impossível,
queres arder o que apagou,
queres a escolha que passou.
Mas tudo é o que tem que ser, tudo flui ou te faz crescer…”
queres a escolha que passou.
Mas tudo é o que tem que ser, tudo flui ou te faz crescer…”
Tiago Bettencourt e Mantha.: O Espaço Impossível
Reencontros…
Henrique abriu os olhos
devagarinho, espreguiçou-se com gosto e voltou a fechar os olhos, aproveitando
o aconchego da cama quente, ouvindo lá fora a chuva a cair. Pensou de si e para
si que era ótimo ser domingo e poder aproveitar este momento de calmaria, sem
ter a urgência de levantar logo e iniciar as rotinas diárias antes de ir
trabalhar. Contudo, ainda de olhos fechados, sentiu que o seu cérebro
entorpecido pelo sono ia começando lentamente a trabalhar e deu por si a
repensar esta ideia de que era domingo…seria mesmo? A dúvida tinha surgido…pegou
no telemóvel…e com um sobressalto percebeu várias coisas ao mesmo tempo: não
era domingo mas sim segunda-feira, ele não tinha tempo para estar ali a
espreguiçar-se, pelo contrário estava muitíssimo atrasado e, para piorar tudo,
estava um dia de chuva o que atrasava sempre o trânsito. Levantou-se num ápice
enquanto pensava que não poderia haver pior forma de acordar e pior forma de
começar a semana. Com toda a velocidade que lhe permitia o corpo, levantou-se,
tomou banho, vestiu-se o mais depressa que pôde, lançou-se para a rua a correr,
tentando proteger-se tanto quanto possível da chuva, enquanto tentava abrir o
carro o mais depressa possível. Ok…já estava seguro dentro do carro…agora é só
esperar que o trânsito não estivesse tão caótico como era de esperar num dia de
chuva torrencial… E…o impensável aconteceu: Henrique pôs a chave na ignição,
tentou ligar o carro e…nada…apenas um tenebroso click quando dava à chave! Não podia ser! Segunda-feira, dia de
chuva torrencial, atrasado em virtude de não ter ouvido o despertador e ter
adormecido e com o carro avariado? O que mais lhe poderia acontecer? Tentando
não ceder à raiva e ao sentimento de impotência, chamou um táxi que o levasse,
o quanto antes à estação de comboio para, finalmente, chegar ao seu local de
trabalho. Eventualmente seria esse o melhor meio de transporte para chegar ao
seu destino… Com sorte, não teria mais que uma hora de atraso…tentaria
compensar na hora de almoço. Não seria fácil livrar-se de uma boa reprimenda. A
famosa pontualidade britânica era, efetivamente, uma característica destes
ingleses. Um ano e meio depois de viver em Londres e ainda não conseguia ser
tão pontual quanto eles eram…
Quarenta e cinco minutos depois, Henrique
conseguia entrar numa carruagem já bem carregada de gente de ar cansado
(alguns), carrancudos (outros), aborrecidos (quase todos) e, finalmente sentindo
que podia descansar por pelo menos uma hora – o tempo que a viagem costuma
levar – procurou lugar onde se sentar. Avistou um lugar vago junto a uma
senhora que olhava pela janela, observando, provavelmente, as movimentações dos
passageiros no cais de embarque. Depois de um “excuse me” sentou-se…e no momento em que a senhora se virou para
lhe fazer um pequeno sorriso indicando que estava à vontade para se sentar, uma
vez que o lugar estava vago, o mundo de Henrique parou. Algo estava
completamente errado naquela imagem ou ele estava a ter alucinações! Poderia
ser…não, não podia ser…mas parecia mesmo a Cláudia. O ar de espanto dela
indicou-lhe que ele não estava enganado. Não parecia a Cláudia! Era,
efetivamente, a Cláudia! Mas como…ali? Num comboio? A caminho de Londres? As
perguntas bailavam-lhe na cabeça mas não lhe chegavam à boca. E ele continuava
com aquele ar espantado a olhar para ela. Digamos de passagem que a Cláudia
também parecia imensamente surpreendida. Até que, finalmente, as perguntas (de ambos)
saíram numa torrente! “Tu?”; “Aqui?”; “O que fazes aqui?” Enquanto as perguntas
saíam em borbotões, os olhos de ambos sorriam e, naturalmente, os braços se
levantaram para os corpos se unirem num abraço apertado. Que reencontro tão
inesperado e tão bom! Só depois de se sentirem naquele abraço apertado é que
passou pelas mentes de ambos que aquele gesto já não devia ser natural. Há quase
dois anos que se tinham separado…e não tinham ficado propriamente amigos. Mas o
instinto e a vontade do abraço fora mais rápido que o ressentimento que ainda poderia
existir entre eles.
Henrique e Cláudia tinham uma
longa história juntos. Conheceram-se ainda no infantário. Nesse tempo eram
inseparáveis. Todas as brincadeiras era para se terem em conjunto. Todos os
momentos eram os ideais para estarem juntos. Gostavam genuinamente da companhia
um do outro, quer fosse na hora da leitura, na hora do almoço, ou nas
brincadeiras de rua. Adoravam-se. Existia mesmo nas gavetas dos pais de ambos
uma fotografia em que, num abraço apertado, tinham trocado o primeiro beijo,
que tinha sido capturado na hora, pela educadora. Um beijo inocente, claro, mas
não deixava de ser o primeiro beijo deles. E cresceram assim, indissociáveis, no
infantário, passando posteriormente pelo primeiro ciclo. Mantiveram essa forte
união durante os quatro anos que levou o primeiro ciclo. Colegas de mesa,
quando a professora o permitia, continuavam a ter brincadeiras juntos, apesar
de a Cláudia por vezes escolher as brincadeiras das meninas e o Henrique as
brincadeiras dos meninos. Ainda assim, encontravam sempre um espacinho durante
os seus dias para partilharem os seus segredos, as suas histórias, os seus
medos e vontades. Cresceram como os melhores amigos e gostavam genuinamente um
do outro.
Quando seguiram para o quinto ano,
começou a criar-se uma pequena cisão. Cláudia aparentava ter crescido muito
depressa, parecia dar os primeiros passos numa adolescência que tardava a
chegar em Henrique. Começou a olhá-lo como uma criança para a qual ela não
tinha paciência. E assim, paulatinamente, foram criando novas amizades, cada um
para seu lado, raramente conversando um com o outro. O início do sétimo ano
ditou a mudança de escola para ambos e deixaram de ser ver definitivamente.
Reencontraram-se no décimo ano. Ambos
tinham mudado bastante, como seria de esperar. Do Henrique que Cláudia
conhecia, só lhe reconhecia a cor do cabelo, um castanho quase negro e os
olhos, cor de mel, sempre risonhos. De resto…o menino deixara espaço ao homem,
de voz rouca, com barba a despontar. Estava bem mais alto, quase demasiado
alto…nem parecia caber na sua própria pele. Mantinha-se bonito, pensou ela.
Quanto a Cláudia, Henrique considerou que mantinha a mesma cara de menina de
nariz arrebitado. O mesmo cabelo indomável, a boca sempre entreaberta num
sorriso. Já o corpo…o corpo apresentava as formas de uma mulher…de uma bela
mulher, pensou. Desse reencontro ao namoro, propriamente dito, decorreram pouco
mais do que alguns dias. Passaram a ser um dos parzinhos românticos do liceu.
Todos os conheciam. Nos intervalos, onde estava um, estava o outro. Descobriram
o amor físico um com o outro. Pode-se dizer que se amavam de verdade. Eram um
casal modelo e todos acreditavam que, terminado o décimo segundo ano, a escolha
natural seria continuarem juntos, viver juntos ou até, quem sabe, casar. Foram
três anos maravilhosos. Cláudia sentia que tinham sido feitos um para o outro.
Pensava num futuro a dois com Henrique ainda que soubesse que cada um tinha
projetos muito diferentes. Sempre que a preocupação com o futuro surgia pensava
nas palavras de uma cigana que se tinha cruzado com eles na rua. A cigana
olhara para eles, tinha-os abençoado e, focando o olhar nos olhos de Cláudia
dissera: “se duas pessoas estão
destinadas a serem uma da outra, o Universo irá sempre encontrar uma forma de
os juntar. Elas nada são uma sem a outra, porque uma completa a outra. Alguns
laços são inquebráveis. Podem ficar mais soltos, através do tempo, através do
espaço, por caminhos que não podem ser previstos…mas a Natureza arranjará sempre
uma forma de os estreitar, reunindo aqueles que estão destinados a estar
juntos…”. Henrique, mais pragmático, riu dessa profecia da cigana. Sabia de
antemão que ela diria isso a todos os casais que se cruzavam com ela. Já
Cláudia ficou bastante impressionada com as palavras da velha cigana que lhe
pareciam tão cheias de verdade e de certezas. E sempre que se sentia mais
insegura na sua relação, relembrava as palavras da velha cigana.
A separação deu-se, de um modo, diria, quase
sereno. Terminado o décimo segundo ano, e apesar de gostarem muito um do outro,
perceberam que tinham objetivos diferentes. Cláudia queria seguir para a
universidade. Toda a vida se tinha preparado para esse momento. Era uma mulher
das letras. Queria ser jornalista. Como tal, a faculdade e um curso de
comunicação eram o seu caminho mais óbvio. Já Henrique…ainda não sabia bem o
que queria seguir. Trabalhar na publicidade seria interessante…mas também no
desporto…quem sabe, na gestão. A verdade é que Henrique não sabia bem o que
queria da vida. E por isso decidiu que queria usufruir daquilo que vulgarmente
se chama de gap year. Pretendia ter
um ano só para ele para poder viajar e conhecer a Europa, de mochila às costas.
Não há dúvidas que ele era bem mais aventureiro que Cláudia… E assim, os
caminhos de ambos se separaram. Convenhamos, quais eram as possibilidades de um
namoro de liceu se manter ao longo dos tempos? Um ano depois Henrique voltou e
ingressou numa faculdade, num curso de Marketing e Publicidade. Durante o ano
em que esteve ausente foram conversando sobre os países que ele visitava e
sobre as aventuras de Cláudia enquanto caloira. Contudo, a paixão foi
esmorecendo aos poucos e cada um acabou por fazer o seu curso e seguir a sua
vida mantendo apenas uma doce lembrança daquela relação.
Reencontraram-se numas férias, tendo
ambos regressado à pequena vila que os vira nascer, para uns dias de descanso:
ela, vinda de uma redação de jornal do Porto, e ele, de uma agência de
publicidade, em Lisboa. E, por mais que cada um tivesse tido outras relações ao
longo daqueles anos, e apesar de ambos se aproximarem da trintena, a verdade é
que nunca se tinham sentido completos com outra pessoa. Ambos sentiam que a
separação tinha criado um vazio que dificilmente poderia ser preenchido. Decidiram
tomar um café para pôr a conversa em dia…e conversaram; e tomaram banhos na
velha ribeira que os tinha acolhido desde crianças; e viram o nascer e o por do
sol junto às velhas casas que tinham sido dos seus avós; e partilharam almoços,
e jantares e até pequenos-almoços. Reencontraram-se em todas as aceções da
palavra. E o amor que sempre os uniu voltou a adquirir força no peito de um e
outro. Um amor que eles sentiam mais maduro. Cláudia continuava a pensar nas
palavras da velha cigana “se duas pessoas
estão destinadas a serem uma da outra, o Universo irá sempre encontrar uma
forma de os juntar…” e cada vez acreditava mais que eram verdadeiras.
Terminados os dias de férias continuaram a ver-se e, com a naturalidade
inerente às almas que se amam verdadeiramente, decidiram partilhar a vida um do
outro. Nos primeiros tempos, ainda que um estivesse em Lisboa e outro no Porto,
estavam juntos sempre que a vida o permitia. E foram felizes. Muito felizes
durante dois anos. Ou pelo menos Cláudia assim pensava. Henrique conseguira transferência
da empresa para a qual trabalhava para uma sucursal no Porto, partilhavam o
pequeno apartamento de Cláudia com o gato Nicolau, tinham uma vida social
razoável e entendiam-se bem. Raramente discutiam, tinham adquirido uma rotina
que lhes dava algum aconchego. Sim, Cláudia era feliz nesta sua vida sem
grandes sobressaltos. Talvez por isso não tivesse notado que os silêncios de
Henrique se iam tornando maiores, que o seu ar ia ficando cada vez mais
carregado, o semblante menos feliz. Henrique não apreciava rotinas. Sentia que
tinha muito para viver e que se estava a prender a uma situação que lhe estava
a cortar as asas. Sentia-se sufocar. Chegava a ter medo de que Cláudia
manifestasse vontade de engravidar. Esse seria mesmo o fim da sua liberdade!...
Apesar dos seus 30 anos, Henrique sentia que não tinha maturidade suficiente
para se manter nessa relação. Queria conhecer muito mais do mundo. Queria
trabalhar no estrangeiro!...
Tomou coragem e, num dia em que
ele próprio preparou o jantar, desabafou a Cláudia o que lhe ia no coração.
Falou do seu jeito de ser livre. Falou da sua falta de maturidade para a
relação que tinham naquele momento. Falou no quanto foi feliz no meio de tantos
encontros e reencontros. Falou na esperança que um dia se voltassem a
encontrar, com o coração mais feliz e a mente mais madura. Falou na vontade de
um dia se reencontrar com uma vontade maior de lutar por aquela relação…e falou
sobretudo, da sua necessidade de sair dali, daquela casa, daquela relação,
daquele trabalho, da sua necessidade de levantar voo. Terminou dizendo que ela
era a mulher que ele amava. E, apesar do sofrimento imenso que ela sentia
naquele momento, acreditou nele. Cláudia sentiu tanta verdade naquelas palavras
que mais não pode fazer senão deixá-lo ir…sem palavras e sem recriminações. De
coração partido.
Todo esse passado passou pela
mente de Henrique e Cláudia à velocidade da luz enquanto durava aquele abraço.
E foi como se se tivessem visto no dia anterior. A vontade de partilhar ideias,
sonhos, pensamentos tinha regressado com toda a sua força. Henrique observava o
rosto de Cláudia iluminado enquanto lhe contava que tinha decidido partir à
aventura. Sempre fora tão ponderada, prudente e cautelosa…cansara-se disso. O
primeiro passo para a mudança tinham sido estas férias: uma semana, sozinha, em
Londres. Estava há dois dias a visitar a cidade e estava a adorar. E mais uma
vez as palavras da cigana lhe acudiram à mente. Quais eram as possibilidades de
ela encontrar o Henrique ali, naquele comboio? Ela que nem sabia que ele trabalhava
em Inglaterra! Combinaram encontrar-se à noite para jantar, pôr a conversa em
dia. Henrique prometeu ser o anfitrião de Cláudia. Como tal, exigiu uns dias de
férias em atraso que lhe eram devidos e decidiu viver intensamente esta
oportunidade que a vida lhe estava a oferecer. E assim aconteceu. O jantar
transformou-se em várias visitas guiadas: visitaram o Palácio de Westminster, o
Palácio de Buckingham, passearam por Trafalgar Square, por Hyde Park e, aquando
das emoções sentidas no London Eye, lá bem nas alturas, trocaram o beijo em que
ambos pensavam desde que se tinham reencontrado naquele comboio. Cláudia tinha
decidido viver aquela semana com todas as emoções que ela lhe poderia trazer.
Não havia dúvidas que esse reencontro com Henrique tinha tornado as suas férias
bem melhores do que ela poderia alguma vez ter pensado. Henrique também não
pensava no dia de amanhã. Queria viver aquele momento a 100%. Sem dúvida que se
existia uma “mulher da sua vida” essa seria a Cláudia. Tantos rompimentos, tantos
afastamentos e, sempre que a via, sentia como que a calmaria no seu coração,
como se a alma reencontrasse algo há muito perdido.
Na noite antes do regresso de
Cláudia a Portugal o jantar foi servido em casa do Henrique. Fez questão de lhe
mostrar que não tinha esquecido a boa gastronomia portuguesa e serviu-lhe um
delicioso bacalhau à Gomes de Sá. O jantar foi delicioso e o ambiente estava
quente, aconchegante. Cláudia exibia um certo ar de nostalgia, pensando no
regresso a Portugal. E Henrique encheu-se de coragem e proferiu apenas uma
palavra: “Fica”…
De todas as reações que Henrique
poderia esperar, aquela a que assistiu foi a menos esperada. Cláudia esboçou um
sorriso triste e disse-lhe: “…queres o espaço impossível, queres arder o que apagou,/queres a escolha que passou./Mas tudo é o que tem que
ser, tudo flui ou te faz crescer…”. Nunca
pensei, continuou ela, que este versos do “Espaço Impossível” me fizessem tanto
sentido quanto hoje…E perante o ar incrédulo dele esclareceu que não havia mais
espaço para aquela relação que ele tinha terminado de forma tão abrupta dois
anos antes. Não havia mais possibilidade de serem felizes, a vez deles tinha
passado… Aquele reencontro tinha sido ótimo, ele seria sempre uma pessoa
especial para ela. Era um reencontro que tinha de acontecer para ela ter tempo
de se despedir, para pôr um ponto final naquilo que para ela tinham sido umas
reticências e para poder continuar a fluir na vida. Henrique ficou sem
palavras, em silêncio, com a mágoa no olhar… Cláudia levantou-se, chamou um
táxi, e voltou para o seu hotel…com lágrimas nos olhos, é certo, mas em paz…
Voltou para Portugal,
para uma vida que lhe pareceu, subitamente sombria, cinzenta, sem alma e sem
cor…Tinha voltado sem ânimo. Pensava e repensava a sua vida, o seu presente, o
seu passado, o que poderia ser o seu futuro. E mais uma vez, enquanto observava
o vazio, lhe vieram as palavras da cigana à mente “se duas pessoas estão destinadas a serem uma da outra, o Universo irá
sempre encontrar uma forma de os juntar”. E desta vez Cláudia decidiu tomar
o seu destino em mãos. Em dois tempos tinha um bilhete para Londres.
Era domingo. Henrique abriu os
olhos devagarinho, espreguiçou-se com gosto e voltou a fechar os olhos,
aproveitando o aconchego da cama quente, ouvindo lá fora a chuva a cair. Pensou
de si e para si que era ótimo ser domingo e poder aproveitar este momento de
calmaria, sem ter a urgência de levantar logo e iniciar as rotinas diárias
antes de ir trabalhar. Ouviu bater à porta. “Quem poderia ser?” Levantar-se para
abrir a porta não estava nos seus projetos. Mas a insistência era tanta…algum
vizinho com problemas? Melhor ir ver mesmo o que se passava. Abriu a porta e…
lá estava a Cláudia, à sua porta, com um sorriso tímido no rosto.
Abraçaram-se…não foram necessárias mais palavras.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018
Dia dos Namorados: os
“Sim” e os “Não”
E sim, eis que é chegado mais um
Dia dos Namorados! Dirão aqueles que estão profundamente apaixonados e
enamorados “Que maravilha! Adoro celebrar esta data! É mesmo o dia ideal para
celebrar o Amor! Sou uma fã de S. Valentim!” No sentido oposto, encontraremos, as usual, aqueles que odeiam
visceralmente o Dia de S. Valentim porque são uns solitários empedernidos,
porque estão de coração despedaçado ou apenas porque não apreciam a celebração
de dia, explicando, uma grande parte deles, que consideram que o amor deve ser
celebrado todos os dias e não apenas no Dia de S. Valentim.
No meio, encontro-me eu. Não
odeio de forma alguma este dia, mas também não posso dizer que o adoro. Há
aspetos que aprecio e, sinceramente, outros que me conseguem tirar a paciência
e quase deixar-me nauseada. Vejamos então quais são os “sim” e os “não” de
festejar este dia.
Comecemos pelos “sim”. A parte
romântica que há em mim (sim, ela existe) acha bonito esta ideia de celebrar o
amor. Gosto da lenda de Santo Valentim que está na base da celebração do dia (a
proibição do imperador Cláudio II de realizar casamentos, a fim dos seus homens
irem para a guerra sem o pensamento preso na mulher e família, a decisão de S.
Valentim de, ainda assim, continuar a realizar os casamentos às escondidas,
permitindo deste modo que os jovens apaixonados pudessem viver o seu amor).
Assumo que também gosto das atividades que se vão fazendo na maior parte das
escolas para celebrar esse dia: desde a celebração da amizade nos mais
pequeninos (abordando a importância dos afetos na vida de todos nós), à criação
de verdadeiras estações de correios para proceder à distribuição de cartões/
cartas para alguém que se gosta, em segredo ou não, à venda de “Maçãs do amor”
(Que irão ajudar os finalistas a angariar uns euros para a sua viagem de final
de ano) entre tantas outras atividades que, não só dinamizam a escola, como
levam os alunos a pensar, espero eu, sobre a importância de alguns sentimentos.
Aprecio também aquilo que é genuíno: o cartão deixado ao/ à namorada
reafirmando sentimentos, e todas as pequenas atenções que, por ser um dia
especial, se faz questão de ter. Aprecio, acima de tudo, aquelas pessoas que
aproveitam este dia para fazer um balanço acerca da importância dos sentimentos
existentes. Convenhamos, celebrar o amor, o verdadeiro, é algo de bem bonito!
Não ficamos todos comovidos quando vemos uma pessoa de mais idade a celebrar
este dia oferecendo um qualquer mimo àquela que ainda é sua amada? Não ficamos
comovidos quando os vemos a passear ainda de mão na mão? Resumindo, os “sim”
deste dia vão para a parte de mim que acredita que o amor genuíno existe em
alguns casais, vão para a importância que este dia pode ter para se “pensar o
amor” e pensar os sentimentos bons. Sim, não precisamos de um dia especial para
isso mas todos sabemos que o existirem datas especiais nos ajuda a lembrar que
temos de o fazer.
E quanto aos “Não”? São alguns,
assumo. Começando por todo o folclore que se gera à volta do dia em si. As
redes sociais serão inundadas por fotografias de “casais felizes” reafirmando o
seu profundo e eterno amor pelo seu par. E fica-nos presente a dúvida: fulano
tal queria mesmo demonstrar o seu amor à sua/seu mais que tudo ou existe uma
enorme vontade de mostrar a todos o quanto somos felizes? Até este dia nem
considerávamos o tal fulano muito romântico…As grandes manifestações de amor
deixam-me sempre com um certo gosto de falsidade, quando são feitas de um modo
tão exposto e tão público…
O aproveitamento comercial do dia,
também me causa alguma urticária. Pespega-se um coração e/ ou um I Love you (o amor em inglês fica sempre
mais romântico) em qualquer objeto e espera-se que venda. São imensos os
artefactos que inundam as superfícies comerciais com essa decoração,
apresentando um gosto duvidoso (falo do meu gosto, é claro) como sejam os
enormes peluches, as canecas, as chávenas de café, as pantufas, as camisolas…e
tudo o mais que alguém se possa lembrar! Assumo: não acho aquilo muito bonito,
falando eufemisticamente, e passaria muito bem sem essa decoração à minha
volta!
Outra coisa que me aborrece. A
impossibilidade de ir a um restaurante nesse dia. É certo que estarão todos
apinhados e, também eles, com muitas flores (na certa, rosas) e corações a
ajudar. E penso: será que jantar à luz de velas com mais 40 casais na sala,
igualmente apaixonados, será o mais romântico que poderá ser feito nesse “dia
do amor”?
E falando em restaurantes, outra
coisa que me deixa à beira da náusea: as ementas! Na ânsia de criar uma noite
romântica para os apaixonados, aposta-se numa decoração cheia de corações,
velas e flores (umas melhor conseguidas que outras) e opta-se por, na maior
parte das vezes, servir os mesmos pratos que são habituais na casa mas
alterando-lhe os nomes para algo mais “amoroso e fofinho”. As entradas vêm
quase sempre instaladas em camas românticas (a maior parte das vezes, alface).
A canja passa a “aveludado de aves apaixonadas”, a sopa de abóbora traz
“beijinhos de presunto”; o lombinho de porco passou a “miminhos com molho de
cogumelos em forno quentinho” (o que raio será o “forno quentinho”?) e até
encontrei um “supremo de peixe-galo enamorado” (Note-se que as denominações
citadas foram “pescadas” de verdadeiras ementas para este dia). Questiono-me:
será que alguém achará romântico todos estes novos nomes? Tenho as minhas
dúvidas…No que a mim me diz respeito, apresento o meu veemente NÃO a estas
denominações para coisas tão nossas como sejam a canja e um lombinho de porco
no forno!
Está aí mais um 14 de fevereiro,
mais um Dia de S. Valentim, mais um dia do amor. Para alguns será um dia
inesquecível, para outros algo próximo do pesadelo. E para muitos outros será
apenas mais um dia que passou a ser altamente marcado pela visão economicista
da data e que por isso estão fartos até à náusea das publicidades acerca desta
celebração, dos bombardeamentos nas caixas de correio acerca de “promoções a
dois” e das ideias para prendas mais ou menos pirosas, que aparecem a toda a
hora nas páginas em que navegam.
Não consigo ter uma opinião
definitiva sobre esse dia. Há prós e há contras, como vimos…De um modo ou
outro…amanhã será 15 de fevereiro…e o S. Valentim já terá terminado!
domingo, 11 de fevereiro de 2018
https://desafio-te.pt/t-907/
Em 2018 vou dizer “amo-te”
Pela
primeira vez em muitos anos não escrevi uma lista dos 12 desejos que queria ver
realizados em 2018. Assim, e aquando do tocar das 12 badaladas, pedi pouco mais
que o habitual, ainda que solicitado de forma menos minuciosa: saúde e
felicidade, para mim e para os que preenchem a minha vida. Pela primeira vez
não me apeteceu ser muito detalhada em relação ao que queria porque na verdade,
e do alto das minhas quatro décadas já vividas, sei é que, de uma forma geral, quero
ser feliz! Muito feliz!
Contudo as minhas quatro décadas passadas
foram-me ensinando algo de muito importante: não basta querer. Há que ir à luta
e sair para a guerra de peito aberto para atingir essa felicidade. Há que
seguir sem medos e, sobretudo, dizer o que queremos sem receios. E foi com o
propósito de dizer tudo, sem medos, que iniciei 2018.
Quando
adolescente tinha por hábito dizer tudo o que me passava pela cabeça. Como se
costuma dizer em bom português: não tinha
papas na língua! Contudo, olhando para trás, vejo que esta ideia de que
dizia tudo o que queria não era 100% verdadeira. Sempre tive maior facilidade
em falar das coisas que via e sentia de forma mais negativa do que propriamente
das coisas positivas. Facilmente me insurgia contra aquilo que me soava a
injustiça ou a atitudes negativas (contra mim e/ ou contra o mundo). No que às
coisas boas e aos sentimentos positivos diz respeito, sempre achei que os meus
gestos falavam por mim e, por isso, sempre tive alguma dificuldade em dizer às
pessoas “amo-te” e “gosto de ti”. A minha própria família sempre foi mais de
gestos grandiosos do que propriamente de palavras. E ainda hoje sou assim.
Tenho dificuldade em dizer olhos nos olhos às pessoas que me são tão
necessárias quanto o ar que respiro o quanto as amo, o quanto são importantes
para mim, o quanto elas são imprescindíveis para o meu equilíbrio e bem-estar.
E assumo que isso me traz, por vezes, menos bem-estar e felicidade do que
gostaria. Penso sempre que devo essas palavras àqueles que me são caros. E
devo-me isso a mim. Ainda que os gestos digam muito, o aconchego das palavras é
enorme. Olhar nos olhos de alguém e dizer o quanto ele nos é essencial é deixar
a nu um pouco da nossa alma, é baixar toda e qualquer proteção, deixando o
peito aberto às balas, ainda que confiando que nenhuma bala virá daquele lado.
É expor e entregar um pouco de nós próprios ao outro e esperar que ele faça o
melhor uso desse pedaço.
Neste ano
que aí vem vou permitir-me dizer “amo-te” e “gosto de ti” aos muitos que me são
essenciais. Vou deixar o coração e a alma nus para exprimirem o quanto amam, o
quanto querem, o quanto sentem falta, o quanto têm saudade. Porque os que amo
merecem e, sobretudo, porque eu mereço essa entrega.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018
http://p3.publico.pt/actualidade/sociedade/25484/geracao-floco-de-neve#.WnmwXocutpk.facebook
A Geração Floco de Neve
Vivemos
numa era em que já nos é impensável viver sem redes sociais. Habituámo-nos, por
demais, a apresentar aos outros os pequenos acontecimentos da nossa vida, a
repartir as nossas alegrias, a demonstrar os bons e os maus momentos, a partilhar
os momentos que consideramos mais interessantes, a ilustrar todo e qualquer
momento do nosso dia através de fotografias. É claro que falo de um modo geral
e é óbvio que alguns se irão expor bem mais do que outros. A par com essa partilha
do nosso dia-a-dia está, de um modo cada vez mais vincado, a partilha de
opiniões. Quer seja através de uma página pessoal numa rede social, quer seja
através de um blogue ou até mesmo em grupos formados para congregar pessoas que
comungam do mesmo interesse, a verdade é que todos nós temos algo para dizer
sobre o mundo e os seus grandes e pequenos acontecimentos, todos nós gostamos
de apresentar a nossa forma de percecionar este “planeta azul” e os humanos que
nele habitam, todos gostamos de tecer comentários sobre a nossa forma de o
tentar compreender, todos (ou a maior parte de nós) gostamos de fazer
observações mais ou menos atentas sobre as notícias diárias que nos chegam do
país e do mundo. E o que à partida poderia ser algo de muito positivo – da partilha
de ideias e de opiniões várias só poderia resultar ideias novas, perspetivas
diferentes sobre os assuntos em questão – torna-se, muitas vezes como um
verdadeiro pesadelo. Assistimos a verdadeiros lutas de gladiadores em que cada
um tenta impor a sua verdade, sem aceitar a verdade do outro, até porque, a
maior parte das vezes nem se coloca em questão que o outro possa ter qualquer
tipo de razão. Penso que esta facilidade que as redes sociais nos ofereceram em
poder comunicar tudo e a toda a hora veio por a nu uma característica de muita
gente que navega por “estas bandas”: a dificuldade das pessoas em aceitar
pontos de vista diferentes.
Curiosamente,
cruzou-se aqui há dias comigo um artigo que versava, entre outras coisas, sobre
esta dificuldade cada vez maior em aceitar pontos de vista diferentes. Pela
leitura do mesmo percebi que, de acordo com vários autores, se tornou habitual
classificar aqueles que atingiram a idade adulta na década de 2010 como a “Geração Floco de Neve”. Não quero aqui
discorrer sobre este velho hábito de classificar com um nome uma geração como
se ela caracterizasse todos os seus elementos. Todos ouvimos falar, ao longo
dos anos dos baby boomers, após a
Segunda Guerra Mundial, a que se seguiu a Geração
X e mais tarde, os Millenials. Efetivamente,
algumas características semelhantes poderão ser encontradas nestas gerações,
ainda que o hábito de rotular me incomode um pouquinho. Mas a verdade é que a
descrição feita sobre esta “Geração Floco
de Neve” me fez imenso sentido, tendo alguma facilidade em identificar
nessa descrição comportamentos e formas de ser que encontramos diariamente nas
redes sociais.
De acordo com a descrição, estamos perante uma
geração formada por pessoas que são extremamente sensíveis a pontos de vista
diferentes, pontos de vista que possam desafiar a sua visão do mundo. E não é
exatamente isso que encontramos nas redes sociais? Muitos dos comentários que
lemos, profundamente ofensivos, mais não são que manifestações de revolta
contra a ousadia de alguém que teve a audácia de apresentar um ponto de vista
(o seu) que, por acaso, é contrário ao da pessoa que estava a ler. Encontramos
nessas pessoas uma certeza que existe apenas uma verdade e que por isso qualquer
opinião que coloque a sua verdade em causa estará a atentar contra a ordem das
coisas e será, por isso, perigosa.
Que
outros traços identificamos nesses representantes da “Geração Floco de Neve” que encontro simultaneamente nos
“comentadores das redes sociais”? Diria uma suscetibilidade excessiva, uma
sensibilidade à flor da pele que as leva a reagirem de forma agressiva sempre
que as suas convicções são postas em causa. Esta agressividade, tão presente
nas redes sociais, será resultado, como disse de uma dificuldade em aceitar o
outro e as suas opiniões, de uma postura de inflexibilidade perante a
diferença, de uma fraca tolerância à frustração (provocada pela emissão de
opiniões diferentes à sua) e de uma débil resiliência, uma vez que não
apresenta capacidade de superar as pequenas contrariedades (opiniões
diferentes) sem o fazer de forma hostil e belicosa. São pessoas que criaram
“espaços seguros” onde nada é posto em causa, onde existe uma ordem das coisas
e é essa ordem que deve ser seguida e nunca questionada.
Como
referi anteriormente, é perigoso e desadequado rotular toda uma geração. Há que
sublinhar, também, que a definição de “Geração
Floco de Neve” vai muito para além das características que aqui referi, não
sendo o objetivo desta crónica caracterizar a geração assim denominada. O termo
foi usado uma vez que me foi impossível ler sobre esta “Geração Floco de Neve” e não identificar peculiaridades e
comportamentos (associados a esta geração) numa grande fatia dos seres que
pululam por estas redes sociais. A saber, seres que comentam notícias,
crónicas, pontos de vista de um modo agressivo, inflexível, demonstrando a sua
rigidez para com os outros, a sua manifesta dificuldade em perceber que não há
uma verdade mas muitas verdades e o desconhecimento de que para observar bem o
mundo temos de fazê-lo olhando para tudo o que nos rodeia e não apenas e só em
frente.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
Lancei a mim mesma um novo desafio. O de escrever, uma vez por mês (pelo menos) um conto partindo dos versos de uma canção. O conto partirá desses versos procurando contar uma história diferente da mensagem veiculada pela letra da canção inicial. Este é o primeiro resultado desse desafio.
Se quiserem propor uma letra (desde que estejamos perante boa música ou perante um bom poema), estejam à vontade. E agora, fiquem com: "Romeu, o Gato".
Enjoy!
As fotos pertencem, mais uma vez ao David Costa. Podem visitar o trabalho dele em: http://olhares.sapo.pt/DavidMOCosta/ ou em https://www.instagram.com/david_mo_costa/
Se quiserem propor uma letra (desde que estejamos perante boa música ou perante um bom poema), estejam à vontade. E agora, fiquem com: "Romeu, o Gato".
Enjoy!
As fotos pertencem, mais uma vez ao David Costa. Podem visitar o trabalho dele em: http://olhares.sapo.pt/DavidMOCosta/ ou em https://www.instagram.com/david_mo_costa/
“Romeu,
o gato”
“…o
olhar triste e cansado procurando alguém
e
a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém,
sabes
eu acho que todos fogem de ti para não ver,
a
imagem da solidão, que irão viver,
quando
forem como tu…” – (Excerto
de “Velho” de Mafalda Veiga)
Poderia dizer-vos que o
Romeu nasceu numa caixinha especialmente preparada para o seu nascimento e o
dos seus irmãos, num ambiente quente e aconchegado, rodeado do carinho e mimo
proporcionado pelas crianças de uma família amante de felinos, onde já se
contava uma mãe gata e um pai gato. Poderia dizer-vos que Romeu fora
frugalmente alimentado pela mãe gata, que por estar bem nutrida, produzia muito
e bom leite para ele e para os manos. Poderia dizer-vos que os primeiros tempos
de vida de Romeu, depois de abrir os olhos, foram passados em felizes
brincadeiras não só com os irmãos mas também com as crianças da família.
Poderia dizer isso tudo e muito mais…mas estaria a faltar-vos à verdade.
A verdade é que Romeu
nasceu na rua. A mãe tinha encontrado o ninho para os seus bebés por baixo de
um arbusto onde repousavam, para felicidade da mãe e dos filhos, algumas folhas
de um jornal velho e abandonado e um saco de Mac Donald’s por ali largado. E
não nascera na rua por um mero acaso. A mãe era uma gata de rua. Aparecera por
aqueles lados com o seu ar escanzelado e por ali tinha ficado. Do pai nada se
sabia. Provavelmente também seria um qualquer gatão de rua que tinha abandonado
a mãe depois de a ter engravidado (o sentimento amor é pouco conhecido entre os
felinos…). E foi assim que, Romeu e mais dois irmãos nasceram, sobre um saco de
papel do Mac Donald’s. Os primeiros tempos foram algo confusos: a mãe ia e
vinha, parava para os amamentar algum tempo e ia embora outra vez. As horas da
alimentação eram uma guerra aberta em que aquele que mais força tinha era
aquele que melhor se alimentava. Dada à má alimentação da progenitora, depressa
o leite deixou de ser suficiente para os três. E, por isso, depressa os três
irmãos começaram a abandonar as brincadeiras entre eles debaixo do arbusto e
passaram a percorrer as ruas daquela pequena cidade procurando, acima de tudo,
comida.
E por isso, pouco tempo
depois de ter nascido, pouco mais de 3 meses após o seu corpinho ter chegado a
esse mundo, Romeu seguiu a sua vida…deixou para trás mãe e irmãos e partiu à
conquista de um lugar para si no mundo, de preferência um lugar que fosse farto
em alimento. Foi assim que, entre um dia passado num lado e outro dia passado
noutro, descobriu o bairro do Casal Novo.
O bairro do Casal Novo
era um bairro tipicamente português, genuíno. As casas, antigas, muitas
decrépitas, mantinham as suas fachadas coloridas que lhe ofereciam um ar de
alegria e aportavam uma certa jovialidade. As cores do bairro também eram
devidas aos estendais de roupa que, em cada casa, se encontravam. O ambiente
era o de uma aldeia em que todos se conheciam e sentiam, de algum modo, a falta
uns dos outros. Era um bairro formado por ruas e vielas, onde era fácil
perder-se e, para Romeu, este era o sítio ideal para viver, encontrando as
pessoas quando pretendia, fugindo delas quando era esse o seu interesse. O
centro do bairro era o pequeno largo onde se concentrava um minúsculo jardim,
com três ou quatro árvores centenárias, os bancos, onde alguns idosos passavam
as suas tardes à sombra das árvores, conversando, ou apenas observando as
crianças a brincar no pequeníssimo parque que lá existia, analisando o dia e a
vida a passar.
Romeu passou a fazer
parte deste quadro. As suas manhãs eram passadas, sobretudo, no passeio, pelas
ruelas, conhecendo esta ou aquela gata, nalgumas zaragatas com outros machos que
por ali passavam, ou optando por ficar no pátio de algumas pessoas que ele
considerava lhe merecerem esta atenção. Por lá comia, dormia, descansava, e
depois voltava à sua vida de valdevinos. As tardes eram, preferencialmente,
passadas no jardim que existia no largo: na paz das tardes de outono, deitado
sobre umas folhas mortas e amarelas, menos presente no inverno (escondido
algures para dormir as suas 16 horas de sono dos justos), reaparecendo nos dias
de sol da primavera e por ali se mantendo numa qualquer sombra nos dias de
verão. Como prezava muito a sua independência, aparecia, quando lhe apetecia,
junto ao pequeno jardim e por lá passava a tarde a dormitar juntos dos
“velhotes” que aproveitavam umas velhas mesas de cimento para jogar às cartas. Sendo
um habitante do bairro, alimentava-se do que lhe era oferecido naqueles
pratinhos deixados nas esquinas das ruelas: um resto do arroz com frango do
almoço, umas espinhas das sardinhas assadas de sábado à tarde ou até uma côdea
de pão ali deixada por uma qualquer alma caridosa. E dias havia que o melhor
que podia encontrar era uma qualquer lagartixa caçada sob o sol da
primavera…Mas Romeu era feliz nesta sua vida…
Contudo, um dia, quando
passeava pelo parque, a sua atenção ficou presa numa figura de um velhote,
esquálida, sentado no banco do jardim. O velho pertencia ao bairro. Os vizinhos
conheciam-no mas afastavam-se um pouco dele. Desde que ficara viúvo, o senhor
Manuel, assim se chamava, tinha-se tornado num velho intratável, casmurro,
metido com os seus pensamentos… passava as suas tardes no jardim, ora lendo,
ora contemplando o vazio, com o olhar perdido, perdendo-se num passado que já
se foi… Ninguém procurava perceber o que se passava por trás daquele olhar
triste e solitário. Talvez porque encarar este naufrágio de um ser humano se
tornasse difícil ou talvez porque o próprio velho não dava espaço para que isso
acontecesse. Falava apenas o necessário e tinha-se tornado uma companhia pouco
aprazível. Romeu escolheu-o. Começou por se aproximar dele todas as tardes no
banco do jardim. Deitava-se perto dele, não se importando com os silêncios do
Sr. Manuel (muito pelo contrário, apreciando-os), limitando-se a ser uma
presença viva junto daquele ser que ia definhando em vida. Com o tempo, o
senhor Manuel passou a apreciar esta companhia felina, tão serena, tão
silenciosa, mas tão presente. Parecia que através do seu olhar ele procurava
dizer:
- “sei
que estás triste, e em sofrimento. Sei que a ausência da tua mulher te é, ainda
hoje, impossível de aceitar. Sei das tuas dores físicas e psicológicas…e estou
aqui para te ajudar a partilhar esse fardo contigo”.
E passou
a ser habitual, então ver o senhor Manuel a caminhar, num passo vagaroso, desde
a sua casa até ao jardim, e do jardim a sua casa, acompanhado por aquele felino
que não tinha sido escolhido mas que o tinha escolhido…
Não serei
exagerada ao dizer que Romeu tornou mais doce os últimos tempos de vida do
senhor Manuel. A preocupação com aquele pequeno ser vivo dera-lhe um pequeno
alento, insuflara-lhe um pouco de vida. E chegou o dia, então, que Romeu sentiu
necessidade de se aninhar no colo do senhor Manuel. Ali passou toda a tarde,
deitado no colo daquele que nem se mexia…Só mais tarde os vizinhos do bairro
perceberam que o senhor Manuel tinha vivido as suas últimas horas, dando o seu
último suspiro à sombra daquelas árvores centenárias, tendo por única companhia
um gato vadio que o tinha escolhido para com ele viver os seus últimos dias. E
penso que não será exagero do narrador dizer que Romeu tornou a partida deste
velho, esquecido num banco de jardim, bem menos solitária.
Romeu não
abandonou o bairro. Pelo contrário, criou novas amizades. Ao longo dos tempos conheceu
e criou amizade com aquela menina que, talvez pelo seu ar frágil e macilento
passava muito tempo em casa (sem contar as longas estadias no hospital), com aquele
velho casal que tinha filhos e netos lá longe (lá pelas “Alemanhas”) e cuja
mulher sofria de problemas cardíacos, com aquele jovem que vivia sozinho, muito
magro, com um ar também ele adoentado, os olhos vermelhos e as pupilas
dilatadas, com aquela senhora que, sem se saber como nem porquê, cometeria
suicídio uns tempos mais tarde… e com tantos outros que padeciam de males
terrenos ou males da alma…
Romeu era
considerado um habitante daquele bairro. Era apreciado por grande parte dos
seus moradores. Cultivava um ar sábio, de um velho filósofo. Possuía aquele ar
de quem percebeu todos os segredos do mundo. Mas, acima de tudo, possuía um dom
que ninguém tinha entendido até agora. Via para além do olhar humano. Conseguia
ver, nos humanos, uma luz, azulada, que os acompanhava quando os seus dias na
terra estavam contados…Não que o Romeu percebesse isso. Afinal, ela mais não
era que um gato…e de rua! Mas a verdade é que a sua natureza o puxava sempre para
passar mais tempo junto daquelas pessoas que possuíam essa estranha luz azul à
sua volta, invisível ao olho humano mas tão percetível para o nosso Romeu. Por
vezes optava por ficar dias, e até semanas, em casa de algumas pessoas que
considerava precisarem da sua companhia. Deixava-se ficar por ali, semeando a
sua calma, a sua sabedoria no aproveitar a vida com o melhor que ela tem e nos
dá, com aquele seu olhar que dizia “estou aqui para te ajudar a suportar essa
dor”. A sua presença companheira e, nalguns casos, o seu calor, quando se
esticava no colo das pessoas que o acolhiam temporariamente eram, acima de
tudo, reconfortantes, um pequeno casulo de carinho de que as pessoas
necessitavam. A todas elas ele ofereceu uma despedida desse mundo terreno em
companhia, a todas elas ofereceu um carinho ímpar naquela hora que os fez
sentir aconchegados na hora da partida.
Romeu lá
continua no bairro. A quem o quiser conhecer bastará passar pelo bairro do
Casal Novo. Lá o encontrarão a descansar por baixo da sombra de alguma árvore
centenária, a fazer a corte a alguma gata ou no colo de algum ser humano…
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