A minha primeira incursão no género "Contos". Enjoy
“Duas vidas, um comboio, um livro, o amor”
Todos
os dias de Maria se iniciavam da mesma forma, seguindo a mesma rotina: Maria
levantava-se de madrugada, tomava o seu duche, tomava o pequeno-almoço,
acariciava o seu gato e saia de casa num passo apressado. Todos os dias Maria
chegava à estação de comboios e aguardava por aquele comboio que a levaria a
caminho do seu emprego. Quando chegava o seu comboio, escolhia uma carruagem o
mais livre possível, sentava-se e tentava ligar-se ao mundo. Desengane-se o
leitor que pensa que esta tentativa de se ligar ao mundo era feita através do
diálogo com os outros passageiros. Também não era feita pela leitura de algum
jornal matutino. Quando muito, Maria lia os títulos maiores no jornal online,
utilizando para tal o tablet ou o smartphone (abençoados
equipamentos que permitiam que, quando a um faltasse a bateria, existisse o
outro).
Os
tempos “perdidos” nos transportes públicos, que eram bem longos, eram ocupados
no manuseamento desses equipamentos. De fones nos ouvidos, de olhar vazio,
ouvia, através do seu smartphone, um programa de rádio, um podcast, ou
apenas música. Por vezes ouvia isto enquanto percorria as redes
sociais…Facebook, Instagram … elas eram a sua forma de socializar, eram a sua
forma de perceber o mundo diariamente: atenta ao que se passava a muitos
quilómetros dali, pelo mundo inteiro, mas completamente ausente de tudo o que
se passava ao lado dela. De facto, ela não se apercebia da idosa cansada que
todos os dias entrava naquele comboio, à mesma hora, sem nada de concreto para
fazer durante e após a viagem. Apenas realizava aquela viagem, diariamente,
para encetar conversa com os passageiros, numa luta pessoal contra uma solidão
crescente. Maria não se apercebia da mãe solteira que todos os dias levava a
filha pela mão a caminho da escola, antes de seguir para o trabalho. Não iria
perceber que apesar do cansaço aquela mãe conversava e ouvia atentamente as
histórias da filha sobre o seu sonho com monstros. Não se apercebia dos quatro
ou cinco adolescentes que socializavam através dos seus telefones, não trocando
uma palavra entre eles. Não se apercebia do jovem estudante de Erasmus que
observava atentamente todos os dias a cidade a desdobrar-se perante os seus
olhos com a curiosidade de alguém que não pertence a este local e por isso se
maravilha com qualquer alteração na luz e nos cheiros. E muito menos se
apercebia de António, que todos os dias fazia questão de ocupar a mesma
carruagem que ela. Todos os dias António, acompanhado de um qualquer livro que
se encontrava a ler naquele momento, tentava ler (ou tentava dar a ilusão que
lia) enquanto, discretamente, procurava observar aquele rosto que o intrigava,
tentava capar aquele olhar que se perdia apenas na contemplação de um vazio ou
na observação do ecrã do seu smartphone.
Foi
tentando chamar a atenção dela com o tipo de livros que trazia em mãos. Sabia,
melhor que ninguém, que os livros não se avaliam pela capa contudo, tentava
captar-lhe a atenção com vários livros, através dos seus títulos. Tentou
mostrar-se interessado por livros que falavam de animais (afinal os animais e
as suas aventuras são sempre um tema de interesse para as mulheres, pensava
ele). Como tal, optou por um título vencedor: “Marley e Eu”. Todavia,
não vislumbrou qualquer tipo de interesse no olhar dela. Procurou chocá-la com um
título bastante sugestivo: “Homens que odeiam mulheres”. Por mais de uma
semana o carregou mas ficou-lhe a certeza de que ela nunca terá olhado para o
livro ou para a sua capa. Procurou espicaçá-la com livros ditos de autoajuda
com títulos tão sugestivos como “Porque os homens fazem sexo e as mulheres
fazem amor?” Procurou mostrar-se um homem romântico, lendo autores
conhecidos por serem mais apreciados pelo público feminino. Ofereceu grande
destaque àquele que as suas amigas diziam ser o mestre: Nicholas Sparks. Com
nenhum deles conseguiu captar a atenção de Maria.
Os dias sucediam-se lentamente, as estações iam
passando, a paisagem ia-se alterando, ao ritmo das leituras de António. A
primavera tinha dado lugar ao verão, ao interregno das férias, ao regresso das
rotinas com os mesmos rostos a viajar no comboio. Chegou o outono e pouco
depois dessa chegada, começou a anunciar-se o Natal. É verdade que as
temperaturas ainda não indicavam grandes e rigorosos invernos mas os dias já
eram mais pequenos e as manhãs mais frias. As ruas e as lojas começavam a
ver-se enfeitadas de espírito natalício. António continuava a viajar no mesmo
comboio, assim como Maria. Contudo, quanto mais António tinha noção da presença
de Maria, mais alheada parecia Maria de tudo o que a rodeava. A sua atenção,
como sempre e desde sempre, estava presa àquelas vidas que acompanhava pelas
redes sociais.
E
chegou o dia em que António decidiu dar vida a um derradeiro esforço. A sua
última tentativa contou com a ajuda de um livro que já considerava ser um
clássico, um dos seus livros de cabeceira: “Cem Anos de Solidão”. Desta
feita optou por, depois de ler enquanto observava, como sempre, a sua colega de
viagem, casualmente esquecer os “Cem Anos de Solidão” em cima do banco…
Abandonou ali uma das obras que ele mais apreciava, jogando a sua última
cartada. Ela pegou nele, correu atrás de António mas ele já não a ouviu. Era o
tudo ou nada para António. Se esta última tentativa não trouxesse os frutos
aguardados esqueceria esta ideia fixa de conhecer Maria.
Maria
voltou então para o caminho que levava…com o livro em mãos…que mais poderia
fazer? À hora de almoço, e pela primeira vez em muitos anos, decidiu folhear o
livro em vez de passar o dedo pelo ecrã do smartphone. Tratava-se do
famoso “Cem anos...” do não menos famoso Gabriel Garcia Márquez. Até
ela, que pouco lia, conhecia a obra e o autor. Pelo meio encontrou um pequeno
bilhete que dizia de forma sucinta:
“Estamos na época de Natal. Decidi
oferecer um livro…encontraste-o, considera-o teu. Espero que ele consiga ocupar
o teu tempo, fazer-te companhia e combater a solidão que por vezes nos assola.
Assinado: António”.
No
dia seguinte, tal como todos os outros dias, Maria levantou-se de madrugada,
tomou o seu duche, tomou o pequeno-almoço, acariciou o seu gato e saiu de casa
num passo apressado. Na mão levava o romance: “Cem anos de solidão”. Tal
como todos os outros dias, caminhou apressada em direção à estação de comboios.
E tal como os outros dias aguardou que o comboio chegasse, para entrar em
seguida na carruagem. Mas hoje, e não como os outros dias, ela não sentou e
baixou a cabeça em direção ao telefone. Sentou-se, com o seu livro em mãos e
ofereceu-se o tempo de observar tudo quanto a rodeava. Viu a mulher idosa que
todos os dias conversava com uma pessoa diferente. Viu a mãe da criança que já
tinha um olhar cansado logo pela manhã mas que ouvia com interesse a sua filha.
Viu os jovens que socializavam através dos seus telefones, não trocando uma
palavra entre eles. Viu o jovem estudante de Erasmus que continuava maravilhado
com a cidade e com as suas gentes. E, finalmente, viu-o. Pela primeira vez os
olhares cruzaram-se, as bocas entreabriram-se num sorriso. O olhar de António
desceu para as mãos de Maria, que seguravam, como se de um tesouro se tratasse,
os “Cem anos de Solidão” e um novo sorriso nasceu no seu rosto. “Olá,
sou o António” – foram essas as palavras dele…
Anos mais tarde, numa biblioteca
caseira, este seria o livro que ainda ocuparia o lugar central na casa de
António e Maria. Aquele era o símbolo da sua união.
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