quinta-feira, 28 de dezembro de 2017


https://desafio-te.pt/t-892/

E depois de ter vivido quatro décadas, mais um ano e uns meses, posso afirmar que gosto de mim e gosto do que vejo ao espelho. Penso que é bastante comum a mulher mais jovem encontrar 1001 defeitos em si. Num momento em que tem uma pele perfeita, sem rugas e sem manchas, um corpo que apresenta poucos traços de celulite ou da idade, a mulher é capaz (e eu era capaz) de encontrar um sem número de imperfeições em si. Contudo, à medida que entramos na terceira década vamos perdendo, ou, pelo menos, eu fui perdendo esses “mimimis” de mulher mais nova e tornando-me, gradualmente, mais mulher. Quando cheguei aos 40 assumi-me como a mulher que sou, com as qualidades e defeitos que aceito sem complexos.
Já não tenho a pele de outrora…é um facto. Tenho manchas nela que não aceitei logo quando se instalaram. Contudo, percebi que fui adquirindo uma serenidade no rosto que suaviza aquelas que são as marcas do tempo. O olhar, esse, não envelheceu. Mantem-se vivo, com uma certa travessura e uma luz de desafio para com a vida. A voz foi ficando gradualmente mais rouca. Pareço um velho carroceiro mas quero acreditar que isso me acrescenta sensualidade! Aceitei, finalmente, que sou, como diz o meu pai, uma “pequena natureza” (um metro e meio de gente!). E por ter aceitado a minha altura sinto-me tão bonita e feminina num salto alto, como num ténis ou num chinelo. Sinto-me bem na minha pele porque faço exercício físico para assim lutar contra o passar do tempo que nos vai fazendo perceber o peso da gravidade…e sinto-me bem na minha pele porque exercito a minha mente: leio, escrevo, vou ao cinema, procuro maravilhar-me com a eterna novidade de tudo o que me rodeia.
Os defeitos que habitam em mim desde que sou gente continuam por cá como velhos companheiros. Continuo com péssimo acordar, continuo a parecer um camionista irado quando estou na estrada a conduzir, continuo a ser briguenta sempre que me surge pela frente uma causa pela qual me parece valer a pena brigar. Mas sei que essas brigas são feitas de forma mais contida. Percebi que não é necessariamente aquele que fala mais alto, aquele que terá mais razão. Aprendi a tirar o melhor partido de tudo o que me rodeia e aprendi que em todas as situações menos boas encontramos, ainda assim, algo de bom. Aprendi que o mundo não é perfeito mas que há muita coisa perfeita (uma paisagem alentejana, um dia de neve na Serra da Estrela, um por-de-sol na praia, o sorrido daqueles que amamos, são apenas alguns exemplos).
Aprendi, ao observar o mundo imperfeito, que eu não sou perfeita mas que possuo alguma perfeição: aproveito a vida a mãos cheias, procuro vivê-la a 100%, procuro ser feliz. E sei, porque também aprendi, que a felicidade é o que nos torna um pouco mais perfeitos, mais bonitos e atraentes.
Por tudo isto digo: gosto do mundo, da vida e gosto de mim! 

terça-feira, 26 de dezembro de 2017



http://p3.publico.pt/cultura/mp3/25231/musicas-de-natal-sonho-ou-pesadelo

E eis que o Natal está terminado. A correria para comprar bacalhau e peru está terminada, a correria para adquirir tudo o que é necessário para realizar a melhor e mais conseguida ceia de Natal está encerrada, as prendas já foram oferecidas e abertas, já se percebeu se acertámos ou não no presente. Poderíamos pensar então que terminou a época natalícia. Mas desenganem-se! Durante a semana que medeia entre o Natal e as festas de fim de ano, reiniciam-se as correrias aos centros comerciais e às lojas. Ainda vamos comprar um presente para aquela pessoa de quem não nos lembrámos mas que se lembrou de nós oferecendo-nos uma prenda, ainda vamos trocar aquele pijama que a tia ofereceu, tendo-se enganado totalmente no tamanho, e começamos a efetuar as compras já a pensar nas festividades de final de ano. Numa só frase: a época natalícia com todo o seu bulício e correria mantém-se. E, como não poderia deixar de ser, a banda sonora para a correria também se mantém. E que banda sonora é essa: as músicas de Natal.
Não me consigo decidir se o All I want for Christmas is you, Have yourself a merry Christmas, Last Christmas, Feliz Navidad, It’s beginning to look a lot like Christmas, ou a nossa portuguesa Nessa noite branca são uma doce recordação que nos chega ano após ano ou, pelo contrário, se são um pesadelo. A verdade é que quando a época se inicia até sabe bem reencontrar esses velhos companheiros de estrada que nos levam a cantarolar, mais que não seja, os refrãos. Conhecemos aquelas músicas naquilo que nos parece ser um “desde sempre”. Sentimos alguma nostalgia, afloram as recordações de natais passados que também aconteceram ao som daquelas eternas músicas natalícias. Sentimos que este ano em especial o nosso espírito natalício vai brotar a 100%. Vamos adorar as decorações, as músicas, as correrias. Vamos preparar uma excelente ceia de Natal! Vamos estar imbuídos dos maiores e melhores sentimentos. Vamos fazer o bem e acreditar num mundo melhor!
Contudo, com o passar do tempo, ouvir estas músicas constantemente torna-se algo próximo de um pesadelo. Exemplificando: Alguns dias antes do Natal, procurando a prenda certa para as pessoas que tornam a minha vida mais doce, entrei, como é normal, em várias lojas. E não minto se disser que em quatro lojas diferentes ouvi quatro versões diferentes do “Last Christmas” dos Wham! Assumo que até é uma daquelas que no início da época me fazem subir o volume do rádio e cantarolar mas a dose é demasiado elevada durante esta época para se tornar suportável! O mesmo acontece com as outras músicas de Natal: ouvem-se em todo o lado! E sentes que, aos poucos, vais ficando com uma certa irritação latente sem saberes explicar bem porquê.
Anexadas a estas músicas de Natal chegam sempre umas outras que, não sendo de Natal, poderiam ser. E também estas são ouvidas, ano após ano, especialmente nesta época. A encabeçar a lista uma música que, assumo, será a única que consigo ouvir desde sempre, sem me cansar: We are the world. Tendo em conta que a música foi gravada com o intuito de arrecadar fundos para combater a fome no continente africano, faz-me algum sentido que a mesma seja recordada numa época que se quer de sentimentos positivos. Outra música que não sendo de Natal é sempre muito recordada (talvez pelo próprio título) será a do malogrado George Michael, Jesus to a child, entre outras que, ano após ano, recuperam vida durante esse período.
A verdade é que a lista de canções de Natal é interminável mas as rádios e, sobretudo, as grandes superfícies comerciais, insistem em criar em nós uma tradição: ouvir, quase em loop, sempre as mesmas canções, ano após ano, sem grandes alterações na lista. Todos os anos algum cantor ou grupo tenta criar um novo hit natalício: Christmas lights dos Coldplay é, quanto a mim, uma das músicas de Natal mais perfeitas que foram lançadas. Curiosamente, é pouco ouvida nas rádios. A própria Sia lançou este ano um álbum recheado com dez canções de Natal: Everyday is Christmas. Contudo, também esse pouco foi ouvido nas rádios e não me lembro de ouvir nenhum dos temas numa superfície comercial ou pelas ruas das cidades que percorri. Desconfio que existe uma playlist de músicas de Natal que não aceita grandes novidades nem grandes alterações. É imperioso que a lista em questão seja ouvida entre 1000 e 1500 vezes durante o mês de dezembro sob pena do mundo acabar se tal não acontecer!
Assumo: ainda o Natal não é chegado e já eu me sinto meio stressada com a repetição constante destas músicas. Onde quer que se vá: lojas, cafés, ruas, as benditas são omnipresentes. E aquilo que começa por ser pouco mais que um som de fundo chega, ao fim de muito pouco tempo, a um barulho praticamente ensurdecedor que enlouquece qualquer um. E sim, sinto que é atingido, com essa repetição ad nauseam das mesmas músicas, o efeito contrário: em vez de ajudar à construção do espírito natalício, sinto que começa a germinar, em todos os massacrados, uma vontade incontrolável que a época termine e que tudo volte ao normal, com ruas, lojas, centros comerciais sem música ambiente natalícia e com as rádios a passar o tipo de música que lhes é habitual. O muito passou a demasiado e torna-se, por isso, insuportável!  

A época natalícia está quase terminada. Mais uma semana de músicas de Natal e o mundo voltará a entrar na normalidade…já me sinto a respirar com maior facilidade!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017


http://pet.publico.pt/2017/12/18/circos-sem-animais-sim/

Estamos em época natalícia. E Natal é a época em que a alegria e os sentimentos bons devem reinar (Pelo menos, é isso que nos vão dizendo desde os nossos mais tenros anos). E, assumo que não sendo uma “incondicional” do Natal, procuro pôr em prática esses sentimentos bons ao longo da época. Assim sendo, nesta época tento ser mais solidária, praticar alguma boa ação e procuro de facto encontrar motivos para estar mais alegre e feliz, acreditando que todos nós podemos ser mais humanos.
E este ano não foi difícil procurar uma situação que me deixasse mais feliz uma vez que os meus olhos se cruzaram com a informação que muito me agradou: o PAN agendou para ser debatido na Assembleia da República, no dia 21 deste mês, um projeto-lei que prevê a proibição total da presença de animais no circo. E sim, sou daquelas pessoas que aplaude de pé este debate e que espera que ele venha a trazer o único resultado possível: a proibição de utilizar qualquer animal no circo. E aplaudo de pé a data em que tal projeto irá passar. Natal é muitas vezes ligado à ideia de circo. Tempo livre, férias, parece ser sempre um bom programa levar as crianças ao circo. Que fique claro que nada tenho contra o circo (apesar de não apreciar muito palhaços que me oferecem mais pesadelos que gargalhadas). Tenho sim uma indignação e até alguma raiva, contra os circos que continuam a usar animais para gáudio dos seres humanos – pequenos e graúdos – que vão apreciar um leão ou tigre a saltar por aros de fogo, cavalos que executam uma espécie de dança sobre duas patas e uma infinidade de atuações grotescas de outros tantos animais. Do que pude ler e perceber, verifiquei que ainda é permitido atuarem, como vedetas do circo, animais como tigres, leões, hipopótamos, camelos, tubarões, zebras, serpentes, cães, cavalos, póneis, burros e raposas. Não sei se os números continuam a ser aqueles que via em criança – quando a própria escola me levava a ver esse infeliz espetáculo – mas sei e tenho certeza que a violência física e psicológica a que são submetidos esses animais se mantém.
 É de esperar, como aconteceu em 2009, quando foi proibida a aquisição e reprodução de certos animais, tais como primatas, ursos, morsas, focas, entre outros, que se ergam as vozes da revolta. Aliás, também já me fui cruzando com algumas. A que mais me chamou a atenção, por ser quase infantil na defesa que faz é a de Dantas Rodrigues. Ora este senhor vaticina a morte do circo, referindo logo no título do seu artigo que “Lá se vai o circo” (Como se a arte circense a apoiasse apenas e só na apresentação de uns quantos números de animais obrigados a realizar malabarismos medonhos). Perturba-o que terminem com as suas memórias de infância do circo com animais. Pelos vistos também aprecia observar aves cativas só porque, quando era um “jovem crianço” colecionava cromos. Argumentos de “sempre foi assim” e de “esta é a tradição” (tal como se defende nas touradas). Não existe argumento mais pobre que esse. Há que reconhecer que se ouvíssemos sempre a tradição provavelmente ainda estaríamos em tempos de escravatura e provavelmente seríamos completamente a favor da pena de morte. Como dizia Einstein “a tradição é a personalidade dos imbecis”.
Afirmo: Circos com animais são inadmissíveis. O sofrimento que lhes é provocado, tanto física como psicologicamente, não pode ser entendido como um mal necessário à manutenção da tradição. Sim, ouço dizer que são bem tratados quando não estão nos espetáculos. Que são bem alimentados, que vivem bem…em habitats, na maior parte das vezes, completamente diferentes do seu. Mas são bem tratados… Obrigar esses animais a viagens constantes, em jaulas exíguas, é tratá-los bem. Deve ser pouco stressante para eles “passear” por esses caminhos portugueses. Forçar os animais a executar movimentos, a agir de determinada maneira (andar em duas patas, saltar por aros de fogo, executar supostas danças – como se via nos elefantes) não poderá ser visto como algo de bom nem como algo belo, se de estética quisermos falar. Esses comportamentos nada têm a ver com a vivência de animais da mesma espécie quando se encontram em liberdade. São movimentos que com frequência são desconfortáveis, assim como perigosos (um elefante apoiar todo o seu peso em duas patas não poderá ser algo inócuo para ele…). Para além de todas as questões físicas, há que pensar nas dores psicológicas – todo o ambiente da apresentação num circo, as luzes, o barulho, a presença de muitas pessoas, só poderão ser angustiantes, difíceis de suportar e stressantes. Mas diz-se: “os animais são bem tratados nos circos portugueses”… E, por fim, pensemos como conseguem os “treinadores” controlar o comportamento dos animais, obrigá-los a realizar esses truques todos que oferecem ao público? Sabe-se que é frequente o uso de chicotes, de focinheiras…já ouvi falar em bastões elétricos… A verdade é que para obrigar um animal a executar aqueles movimentos grotescos há que quebrar a sua força de vontade, há que dar a perceber quem é o mestre e quem é a besta…tudo isso será, mais uma vez, tratar bem um animal?
A proposta do PAN é que sejam proibidos todos os animais no circo e que os mesmos sejam reencaminhados para reservas onde possam recuperar e preservar a sua integridade. Mais uma vez reafirmo que concordo, também, com essa solução.
O vaticínio do senhor Dantas de que o circo ficará mais pobre sem animais, que está anunciada a sua morte, mais não é do que a incapacidade de perceber o que já ficou provado pelo Cirque du Soleil e alguns outros que abandonaram a presença dos animais no espetáculo: a arte humana é suficiente para manter de boa saúde o maior espetáculo do mundo!
Por fim, e porque as palavras já vão sendo excessivas, uma pequena nota: não basta legislar sobre a presença de animais no circo. Há que relembrar a existência das touradas, dos espetáculos de golfinhos e leões-marinhos ou de todo e qualquer espetáculo público de exibição de animais para diversão do ser humano. Todos eles deveriam ser, também, questionados…


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017


A minha primeira incursão no género "Contos". Enjoy

“Duas vidas, um comboio, um livro, o amor”
Todos os dias de Maria se iniciavam da mesma forma, seguindo a mesma rotina: Maria levantava-se de madrugada, tomava o seu duche, tomava o pequeno-almoço, acariciava o seu gato e saia de casa num passo apressado. Todos os dias Maria chegava à estação de comboios e aguardava por aquele comboio que a levaria a caminho do seu emprego. Quando chegava o seu comboio, escolhia uma carruagem o mais livre possível, sentava-se e tentava ligar-se ao mundo. Desengane-se o leitor que pensa que esta tentativa de se ligar ao mundo era feita através do diálogo com os outros passageiros. Também não era feita pela leitura de algum jornal matutino. Quando muito, Maria lia os títulos maiores no jornal online, utilizando para tal o tablet ou o smartphone (abençoados equipamentos que permitiam que, quando a um faltasse a bateria, existisse o outro).
Os tempos “perdidos” nos transportes públicos, que eram bem longos, eram ocupados no manuseamento desses equipamentos. De fones nos ouvidos, de olhar vazio, ouvia, através do seu smartphone, um programa de rádio, um podcast, ou apenas música. Por vezes ouvia isto enquanto percorria as redes sociais…Facebook, Instagram … elas eram a sua forma de socializar, eram a sua forma de perceber o mundo diariamente: atenta ao que se passava a muitos quilómetros dali, pelo mundo inteiro, mas completamente ausente de tudo o que se passava ao lado dela. De facto, ela não se apercebia da idosa cansada que todos os dias entrava naquele comboio, à mesma hora, sem nada de concreto para fazer durante e após a viagem. Apenas realizava aquela viagem, diariamente, para encetar conversa com os passageiros, numa luta pessoal contra uma solidão crescente. Maria não se apercebia da mãe solteira que todos os dias levava a filha pela mão a caminho da escola, antes de seguir para o trabalho. Não iria perceber que apesar do cansaço aquela mãe conversava e ouvia atentamente as histórias da filha sobre o seu sonho com monstros. Não se apercebia dos quatro ou cinco adolescentes que socializavam através dos seus telefones, não trocando uma palavra entre eles. Não se apercebia do jovem estudante de Erasmus que observava atentamente todos os dias a cidade a desdobrar-se perante os seus olhos com a curiosidade de alguém que não pertence a este local e por isso se maravilha com qualquer alteração na luz e nos cheiros. E muito menos se apercebia de António, que todos os dias fazia questão de ocupar a mesma carruagem que ela. Todos os dias António, acompanhado de um qualquer livro que se encontrava a ler naquele momento, tentava ler (ou tentava dar a ilusão que lia) enquanto, discretamente, procurava observar aquele rosto que o intrigava, tentava capar aquele olhar que se perdia apenas na contemplação de um vazio ou na observação do ecrã do seu smartphone.
Foi tentando chamar a atenção dela com o tipo de livros que trazia em mãos. Sabia, melhor que ninguém, que os livros não se avaliam pela capa contudo, tentava captar-lhe a atenção com vários livros, através dos seus títulos. Tentou mostrar-se interessado por livros que falavam de animais (afinal os animais e as suas aventuras são sempre um tema de interesse para as mulheres, pensava ele). Como tal, optou por um título vencedor: “Marley e Eu”. Todavia, não vislumbrou qualquer tipo de interesse no olhar dela. Procurou chocá-la com um título bastante sugestivo: “Homens que odeiam mulheres”. Por mais de uma semana o carregou mas ficou-lhe a certeza de que ela nunca terá olhado para o livro ou para a sua capa. Procurou espicaçá-la com livros ditos de autoajuda com títulos tão sugestivos como “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?” Procurou mostrar-se um homem romântico, lendo autores conhecidos por serem mais apreciados pelo público feminino. Ofereceu grande destaque àquele que as suas amigas diziam ser o mestre: Nicholas Sparks. Com nenhum deles conseguiu captar a atenção de Maria.
Os dias sucediam-se lentamente, as estações iam passando, a paisagem ia-se alterando, ao ritmo das leituras de António. A primavera tinha dado lugar ao verão, ao interregno das férias, ao regresso das rotinas com os mesmos rostos a viajar no comboio. Chegou o outono e pouco depois dessa chegada, começou a anunciar-se o Natal. É verdade que as temperaturas ainda não indicavam grandes e rigorosos invernos mas os dias já eram mais pequenos e as manhãs mais frias. As ruas e as lojas começavam a ver-se enfeitadas de espírito natalício. António continuava a viajar no mesmo comboio, assim como Maria. Contudo, quanto mais António tinha noção da presença de Maria, mais alheada parecia Maria de tudo o que a rodeava. A sua atenção, como sempre e desde sempre, estava presa àquelas vidas que acompanhava pelas redes sociais.
E chegou o dia em que António decidiu dar vida a um derradeiro esforço. A sua última tentativa contou com a ajuda de um livro que já considerava ser um clássico, um dos seus livros de cabeceira: “Cem Anos de Solidão”. Desta feita optou por, depois de ler enquanto observava, como sempre, a sua colega de viagem, casualmente esquecer os “Cem Anos de Solidão” em cima do banco… Abandonou ali uma das obras que ele mais apreciava, jogando a sua última cartada. Ela pegou nele, correu atrás de António mas ele já não a ouviu. Era o tudo ou nada para António. Se esta última tentativa não trouxesse os frutos aguardados esqueceria esta ideia fixa de conhecer Maria.
Maria voltou então para o caminho que levava…com o livro em mãos…que mais poderia fazer? À hora de almoço, e pela primeira vez em muitos anos, decidiu folhear o livro em vez de passar o dedo pelo ecrã do smartphone. Tratava-se do famoso “Cem anos...” do não menos famoso Gabriel Garcia Márquez. Até ela, que pouco lia, conhecia a obra e o autor. Pelo meio encontrou um pequeno bilhete que dizia de forma sucinta:

“Estamos na época de Natal. Decidi oferecer um livro…encontraste-o, considera-o teu. Espero que ele consiga ocupar o teu tempo, fazer-te companhia e combater a solidão que por vezes nos assola. Assinado: António”.

No dia seguinte, tal como todos os outros dias, Maria levantou-se de madrugada, tomou o seu duche, tomou o pequeno-almoço, acariciou o seu gato e saiu de casa num passo apressado. Na mão levava o romance: “Cem anos de solidão”. Tal como todos os outros dias, caminhou apressada em direção à estação de comboios. E tal como os outros dias aguardou que o comboio chegasse, para entrar em seguida na carruagem. Mas hoje, e não como os outros dias, ela não sentou e baixou a cabeça em direção ao telefone. Sentou-se, com o seu livro em mãos e ofereceu-se o tempo de observar tudo quanto a rodeava. Viu a mulher idosa que todos os dias conversava com uma pessoa diferente. Viu a mãe da criança que já tinha um olhar cansado logo pela manhã mas que ouvia com interesse a sua filha. Viu os jovens que socializavam através dos seus telefones, não trocando uma palavra entre eles. Viu o jovem estudante de Erasmus que continuava maravilhado com a cidade e com as suas gentes. E, finalmente, viu-o. Pela primeira vez os olhares cruzaram-se, as bocas entreabriram-se num sorriso. O olhar de António desceu para as mãos de Maria, que seguravam, como se de um tesouro se tratasse, os “Cem anos de Solidão” e um novo sorriso nasceu no seu rosto. “Olá, sou o António” – foram essas as palavras dele…

Anos mais tarde, numa biblioteca caseira, este seria o livro que ainda ocuparia o lugar central na casa de António e Maria. Aquele era o símbolo da sua união.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017


http://p3.publico.pt/actualidade/sociedade/25134/lareira-e-os-pequenos-grandes-prazeres-que-ela-nos-traz#.WjJfD0V6SpE.facebook

A lareira…e os pequenos grandes prazeres que ela nos traz!
Existem prazeres que considero estarem intimamente relacionados à província. O prazer de estar sentado a uma lareira é um deles.
Nasci em França. Vivi os primeiros anos da minha infância numa zona do país bastante fria, que não raras vezes nos brindava com neve. O frio, na rua, era cortante. É uma das recordações que tenho. Mas, em casa, o ambiente era para lá de quente. Aquecimento central em todas as divisões, temperaturas a fazer lembrar mais facilmente o verão que o inverno que se passeava lá fora. Contudo, não possuía lareira. Apenas uns radiadores de parede, alimentados, na época, a gasóleo, que traziam uma sensação de enorme calor mas que não ofereciam aquela sensação de aconchego que uma lareira nos pode trazer.
“Conheci” as lareiras e as suas qualidades, mais tarde, quando passei a viver em Portugal. Não só a nossa casa tinha lareiras como as casas dos meus avós também as tinham. É claro que já as tinha visto antes. Mas apenas as via no verão, sem lume, um local arrumado a um canto ocupado por umas quantas panelas de ferro fora de uso naquela época. Lembro a estranheza que se apoderou de mim a primeira vez que senti frio em Portugal. Eu conhecia o Portugal das férias, o do mês de agosto, aquele em que está sempre sol, não chove e não faz frio. A ideia de frio, da necessidade de acender uma lareira, não se coadunava com essa imagem que tinha criado ao longo dos meus primeiros anos de vida. Assumo que os primeiros anos em Portugal foram de invernos difíceis. Claramente a temperatura dentro das casas não era aquela a que estava habituada em França. Nem a nossa casa, nem as casas dos meus avós estavam apetrechadas com aquecimento central. Penso que não era ainda muito usual, no país de início dos anos 80, o aquecimento central. Possuíamos uns radiadores nos quartos e o centro da casa, o local onde todos nos reuníamos, era a lareira – estivesse ela na cozinha, ou na sala de estar, o certo é que era lá que nos reuníamos para aquecer o corpo e, descobri mais tarde, aquecer a alma.
Descobri o prazer de estar sentada a uma lareira, a observar serenamente o tempo passar, com as minhas avós. No inverno, muito do dia era passado à lareira. O lume (como se diz por cá) era aceso logo de manhã. As minhas avós ainda cultivaram o cozinhar em panelas de ferro, lentamente, usando o lume. Por isso ele era presença constante, da manhã à noite. Mas era as tardes que me agradavam. Chegar da escola e tomar o lanche à lareira era um prazer que descobri nessa época. O chá (imprescindível na hora do lanche) sabia melhor quando sentada, nas pequenas cadeiras de palha, feitas de propósito naquele pequeno tamanho para nos podermos aproximar do lume e nos aquecermos convenientemente. A acompanhar o chá vinham as torradas de lume (que ainda hoje considero daquelas coisas simples mas que são maravilhosas!) Lanche terminado, ali ficávamos a ver o dia findar, a luz dar lugar à noite e à lua, enquanto contávamos o nosso dia, as peripécias que poderiam ter acontecido ou se desfiavam memórias (as minhas avós) de tempos da juventude. E, por vezes, apenas ficávamos em silêncio, a observar as chamas, a ouvir o crepitar da lenha a arder. E foi nesses silêncios que percebi que a lareira e o lume fazem companhia. Não te sentes só quando tens o lume a arder. Ele é uma companhia quer estejas acompanhada ou sozinha. Quem nunca leu um livro junto à lareira? Quem nunca se deixou embalar pelo calor que dela emana e dormitou, apreciando o seu calor? Quem nunca bebericou um vinho ou uma jeropiga (tão nossa!) observando o dançar das chamas? Quem nunca viu um filme de “sábado à tarde” (Aqueles filmes que pouco te interessam mas que vês, em estado semivegetativo) apenas porque se sentia quentinho à lareira, apesar do frio imenso lá fora? E ainda, quem nunca ao observar um bom lume numa lareira, deu por si, de algum modo, a meditar, a limpar a mente, a pensar sobre a vida e, sobretudo, a procurar alguma serenidade?
Por outro lado, a lareira e o lume são os grandes companheiros para quando estás em companhia. Haverá algo melhor que os petiscos com amigos à volta de uma lareira? As conversas fiadas, as horas perdidas, enquanto se assa e saboreia uma morcela ou uma chouriça, são um programa ótimo para as tardes e noites de inverno. E se a companhia for a nossa cara-metade? Também a lareira será um poderoso aliado, desta feita, na criação de um ambiente propício ao romantismo (todos nós teremos a cabeça povoada de imagens de chalés na montanha e uma lareira, penso eu!)
Sou capaz de ficar horas sentada à lareira: a pensar na vida, observando a dança das chamas a aumentar ou a diminuir, a mudar as suas tonalidades, a apreciar o seu calor e a sua companhia, a petiscar (quem nunca comeu laranjas à lareira perdeu um pouco de céu!), a deixar-me envolver pelo seu calor bom, aconchegante. E isto porque gosto de um bom lume, de um lume que me aqueça o corpo e a alma. O lume faz-me sentir, nem sei bem porquê, em companhia e em segurança. Faz-me sentir bem. Penso que não serei a única…





sexta-feira, 1 de dezembro de 2017


Da morte… e da dor
E de tempos a tempos, a vida faz questão de nos lembrar, da forma mais brutal, que ela é vida e que por isso se nasce, cresce e morre. A verdade mais elementar é que todos os dias nascem pessoas. E, da mesma forma, todos os dias morrem pessoas. Por isso, viver é saber conviver com a imensa alegria que nos traz um nascimento, assim como, com a enorme tristeza que o desaparecimento de uma pessoa nos provoca.
Contudo, verificamos cada vez mais que somos uma sociedade que não se encontra preparada para a morte, nem para a perda daqueles que nos são caros, daqueles que, de um modo ou de outro, fazem parte da nossa vida. O facto de sabermos que esta é a lei da vida, que a morte é parte integrante da nossa existência, não nos prepara para a partida de qualquer ente querido. Somos uma sociedade que sonha com a juventude eterna. Usamos todo o tipo de cremes, todo o tipo de tratamentos para adiar uma velhice que nos aproximará (se a caminhada ocorrer de um modo dito normal) da ideia de morte. Não pensamos na possibilidade constante da morte (nossa e dos nossos) e, de um modo pueril, achamos que ela acontece aos outros, a outras pessoas e a outras famílias. E esse pensamento é necessário para vivermos com alguma serenidade, arrumando numa parte escura do nosso cérebro a possibilidade constante de desaparecer deste mundo, a possibilidade constante de passarmos a ser apenas uma memória naqueles que nos rodeavam. A verdade é que nos é difícil aceitar que um dia iremos morrer e que um dia poderemos ter de conviver com a separação que a morte provoca.
 Apesar de tudo, e por difícil que a morte seja de aceitar, parece-nos ser mais fácil ter uma atitude resignada e menos dorida perante ela quando a mesma acontece em pessoas que viveram uma longa vida. Sentimos que aquele ser cumpriu a sua viagem neste mundo e que agora pode partir sem deixar grandes sonhos por viver. Foi uma vida que chegou à sua meta e que agora se apaga. Não quero com isto dizer que seja fácil. Apenas considero que é mais fácil aceitar esta lei da vida e, a seu tempo, realizado o luto necessário, abandonar a dor lancinante e dar lugar a um sentimento mais doce e resignado. Contudo, quando o fenecimento se dá em pessoas que ainda tinham muito para viver, muito para dar, sentimos que o chão nos foi roubado. A aparente segurança com que conseguimos viver, afastando de nós a ideia da morte, ignorando-a, é-nos roubada quando uma vida jovem é ceifada. Sei que tais mortes nunca são resolvidas no nosso íntimo. Nunca nos abandona esta sensação que muito ficou por dizer, muito ficou por sentir, muito ficou por viver. No fundo fica uma sensação de vazio, uma sensação de vida inacabada, uma sensação de vida não cumprida.
Ainda assim, e com a inexorabilidade da passagem do tempo, a dor vai ficando mais ténue. Reaprendemos a viver, convivendo com a ausência da pessoa que nos deixou. A mágoa vai ficando mais lá no fundo, tapada por camadas de aceitação, por algum esquecimento e pelo surgimento de um novo sentimento, ajudado pelas memórias deixadas por quem partiu: uma saudade que nunca nos abandonará mas que se vai tornando mais tolerável, mais doce, menos devastadora. A nossa vida, porque assim é a lei da vida, sobrepõe-se à vida perdida. E é essa força, que alguns de nós desconhecem possuir, que nos permite continuar a viver, independentemente da perda de entes queridos.
As últimas semanas têm sido negras…demasiado negras para o país. Em 15 dias perdemos três nomes maiores de áreas variadas. E, quando o país pensava que já chegava de notícias tristes, somos assombrados a meio de uma tarde de 5ª feira com mais uma fatídica notícia: desta feita foi o Zé Pedro que decidiu dizer farewell e nos deixar. É uma notícia dura. Ainda que fosse esperada, é uma notícia difícil de receber, de aceitar e de compreender. Mais um artista que, por morrer tão jovem, muito deixa por viver, por cumprir e por sonhar.
Todos os dias morrem pessoas. Sabemos isso. Mas quando morrem pessoas que, de alguma forma se encontram mais próximas de nós, é-nos substancialmente mais difícil ignorar esta realidade. Os Xutos & Pontapés e a figura do Zé Pedro acompanharam-me durante a minha infância, como uma das poucas bandas portuguesas com sucesso. Acompanharam-me no meu tempo de estudante: Queima das Fitas sem Xutos não era Queima. Acompanharam-me ao longo dos anos que se seguiram como a banda que mais vezes vi ao vivo em tantas cidades deste país. Concertos inesquecíveis, em que se estabelecia entre a banda e o público uma simbiose perfeita! Em todos eles, uma das imagens que ficava: o gosto de estar em palco e o sorriso eterno do Zé Pedro.

O facto é que o Zé Pedro abandonou o palco. E todos nós sentimos que perdemos um dos nossos, um dos que nos faz ter orgulho em ser português. E por isso digo que esta é a hora do país exprimir a dor, de se despedir de quem nos abandona tão precocemente, de cumprir o luto, de acalentar a dor. Só assim daremos lugar às memórias doces que a seu tempo chegarão.