“O Inferno Somos Nós”
Ainda estava a tentar
sintonizar-me com o mundo, olhos mal abertos, espírito pouco acordado, quando
ouço nas notícias a atualização do drama de Pedrógão Grande. E íamos, a esta
hora, em 43 mortos (Na última atualização que ouvi íamos em 58 mortos…). Que informação
terrível para se ter logo pela manhã. Custa tanto processar uma informação
destas que cheguei a pensar “não terei acordado e estarei a ter um pesadelo?”
Mas o facto é que não é pesadelo.
O facto é que ontem deflagrou um incêndio com tal violência que ceifou a vida a
58 pessoas, existindo outras tantas (e veremos se este número não aumenta)
feridas.
Chora-me a alma pelas vidas que
foram interrompidas, por aquele pedaço de terra magnífico que sucumbiu às
chamas, por tudo o que num ápice deixou de ser.
A minha vida de cigana de
professora contratada tem-me levado a trabalhar e a conhecer muitos locais de
que apenas tinha ouvido falar. Um desses locais foi Castanheira de Pera na zona
do Pinhal Norte, como se costuma referenciar. Para mim, e à primeira vista,
mais não era do que uma minúscula vila perdida no meio do Pinhal. Mas
rapidamente se aprende a gostar dessa zona. Rapidamente se percebe que
Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, são zonas
paradisíacas, enquadradas por um verde maravilhoso, que cria paisagens de
sonho. Num mês criei um vínculo com a terra e as suas gentes, que se revelaram
autênticas, que ainda hoje persiste. Por isso, esta tragédia me marca como
ferro em brasa e me deixa a alma e o coração em cinzas, tal como se encontra a
paisagem que rapidamente desapareceu à frente dos nossos olhos.
E nós? O que fazemos? Assistimos
impotentes a mais uma tragédia. Enquanto jantávamos, ouvíamos o que se passava.
Quiçá até nos teremos comovido e soltado uma ou outra lágrima. Repetimos frases
como “Meu Deus!”, “Que horror!”, “Morte a quem terá provocado esses incêndios!”
(Não conseguimos acreditar que tudo se deve a uma trovoada seca! Precisamos de
culpados!) E, com essas palavras e a nossa revolta, sentimo-nos um pouco
reconfortados, percebemos que pouco podemos fazer e dizemos “passa-me o molho
para as batatas, se faz favor!”
Sentimos profundamente as perdas
de Pedrógão. Tal como ficámos indignados e tristes com as mortes de Londres
(curiosamente, e coincidência macabra, também uma tragédia provocada pelo
fogo). Bradamos contra o DAESH sempre que temos conhecimento de mais um
atentado e de mais uma vez, mortes de inocentes. Escrevemos nas redes sociais o
nosso lamento. Juntámos à nossa foto de perfil um “Je suis…qualquer coisa”. Mas
o certo é que, depois disto tudo, iremos virar a cara e dizer “passa-me o molho
para as batatas”.
Estamos demasiado habituados ao
sofrimento alheio. Sentimos uma piedadezinha ao mesmo tempo que, bem lá no
fundo, nos regozijamos por a tragédia ser “lá longe”. Por vezes, mais perto,
como hoje, mas continua a ser “lá”…
O imenso sofrimento a que
assistimos, muitas vezes em direto, retirou-nos a capacidade de sentir pouco
mais que uma empatia momentânea com o sofrimento alheio.
Infelizmente a tragédia aconteceu.
Numa proporção que nunca me lembro de ter acontecido. Lembro bem quando a minha
serra, a da Estrela, ardeu. Lembro da tristeza imensa de ver desaparecer aquilo
que era o nosso orgulho. Apenas terei sentido uma parte do desespero das gentes
de Pedrógão. Tenho certeza disso. Mas espero que esta tragédia não venha a cair
no famoso “passa-me o molho para as batatas, se faz favor”. Mais que encontrar
culpados, se é que os há, é necessário que a tragédia traga como resultados, e
mais uma vez, a importante questão da limpeza das matas. Não encontraremos
gente disposta a fazê-lo? Mais que encontrar culpados, temos de deixar de
pensar no molho das batatas e reunirmo-nos em volta desta dor e tentar criar
uma onda de apoio a quem tudo perdeu…provavelmente até a esperança.
O dia amanheceu sombrio.
Ligeiramente mais fresco…parece-me. Escuro… o fumo e o seu cheiro chegam até
aqui, à Covilhã…Fica a esperança que os deuses tenham alguma comiseração pelas
gentes que tanto sofreram e pelos bombeiros que continuam no combate às chamas
e nos enviem um dia mais fresco e, quem sabe, com alguma chuva.
Concluo, no fim, que “o inferno
somos nós”. Somos nós quando vemos tragédias acontecerem uma e outra vez e nada
fazemos: não exigimos melhorias, não exigimos alteração de medidas. Não
questionamos nem exigimos coisa nenhuma…Que ordenamento florestal temos nós
para se dar uma tragédia destas? Sentimos que a nossa obrigação é sentir pena
do que aconteceu, sentimos como obrigação ajudar com algum dinheiro e algum
apoio às vítimas. Deste modo, sentimos que somos bons samaritanos e que ajudámos
o próximo. Aligeiramos a nossa consciência com medidas mais ou menos fáceis.
Não exigimos um mundo melhor e seguimos em frente aguardando nova tragédia, que
sabemos que, cedo ou tarde, chegará, apagando da nossa consciência a tragédia
última. Por isso, mais que as chamas, reafirmo “o inferno somos nós”, na nossa
inatividade.
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