Apesar de ser um corpinho com
sangue 100% português, com pai e mãe saídos da Beira, quis o destino que viesse
a abrir os olhos, pela primeira vez, em território francês. E por lá permaneci durante
alguns anos. Ainda na minha infância, bem jovem, vim viver para Portugal.
Assumo que o Portugal dos anos 80 era bem diferente do país que eu conhecia. Em
muitos aspetos considero que sofri um choque cultural. Basta dizer, a título de
exemplo que, quando vinha de férias, só achava que estava verdadeiramente em
Portugal quando via as estradas de terra batida carregadas de pó! Diga-se, em
abono da verdade, que vinha passar férias para o interior de Portugal. Um
interior que ainda hoje possui diferenças flagrantes com o litoral. Mas, o
certo é que foi para aqui que vim viver e foi a esta zona do país que tive de
me adaptar. Sobre as grandes diferenças encontradas falarei outro dia. Do que
quero falar hoje é de um dos hábitos mais comuns que este país apresentava e
que muito me agradou:
O hábito das pessoas passarem na rua e de se
cumprimentarem!!!!
Para quem vinha de uma cidade com
uma dimensão considerável em que os cidadãos se comportavam de forma mais fria
e menos humana, esse hábito foi para mim algo de magnífico. E, como seria de
esperar de uma conversadora como eu, abracei este hábito como se o tivesse tido
desde o primeiro dia do nascimento e passei a dizer “Bom dia” ou “Bom dia, como
está?” (na versão que utilizava para as pessoas que me pareciam mais idosas – o
que, na época, era toda e qualquer pessoa que tivesse ultrapassado os 40 anos…)
a toda a gente que se cruzava comigo no meu caminho para a escola. E ainda eram
algumas pessoas, tendo em conta que caminhava uns bons 10 a 15 minutos!
Foi nessas minhas caminhadas que
conheci aquele que viria a batizar de “Monsieur Bonjour” (A língua francesa
ainda estava muito marcada na minha memória…). Monsieur Bonjour era um senhor
com quem me cruzava todos os dias de manhã. E todos os dias o senhor, que tinha
alguma dificuldade em caminhar, parava, quando se apercebia que eu vinha lá,
preparando o seu “Bom dia”. Todos os dias, durante muitos anos, este cenário se
desenrolou da mesma forma. Por isso o batizei como Mr. Bonjour (Sr. Bom dia).
Todos os dias ficava com a sensação que aquele bom dia era importante para ele.
Como caracterizar o Monsieur Bonjour?
Poderia dizer que era uma
excelente pessoa. Que trazia rebuçados nos bolsos para as crianças…Mas não era
o caso. Era um homem que parecia zangado com a vida, dono de um olhar sem
brilho… Quando atuávamos em bando, correndo pelas ruas, perturbando
simultaneamente a paz das ruas e o lento caminhar de Mr. Bonjour não raras
vezes éramos brindados com um chorrilho de asneiras… Era um solitário…talvez o
olhar vazio se devesse a essa solidão. Penso que seria viúvo…nunca lhe conheci
família…nem sequer um animal de companhia. Vivia sozinho, num casebre tão inseguro
nos seus alicerces quanto o sr. Bonjour nas suas pernas…Casa e dono
apresentavam o mesmo ar miserável e abandonado.
Apesar de pouco simpático no geral, sempre
senti que Mr. Bonjour aguardava pelo meu “Bom dia”. E todos os dias eu o fazia.
Porquê? Porque esse hábito se tinha enraizado em mim. Tinham-me dito que devia
cumprimentar as pessoas quando passava por elas e eu cumpria religiosamente – Acho
que jogava na altura mais pelas regras do que propriamente agora. Sendo a
criança que era, não penso que fosse por achar que ia dar um sentido diferente
ao seu dia…Não pensava sobre isso…era uma criança.
Contudo, hoje, olhando para trás, sei que, com
a inocência da criança que eu era na época, tornei o mundo do Mr. Bonjour mais
simpático e mais aceitável. Dei-lhe uma outra luz (pelo menos nos ínfimos
momentos entre o passar por ele, olhar para ele, dizer bom dia e ouvir a
resposta). Ofereci-lhe o olhar de um ser humano, tornei-o menos transparente (alcoólico
e zangado com a vida, tinha tendência a ser ignorado pelas “pessoas de bem”).
Eu não desviei o olhar como grande parte das pessoas faziam e fi-lo merecedor
de um bom dia. Sim, foi pouco. Não foi nada. Mas sempre senti que, para ele,
aquele bom dia vindo de uma criança de pouco mais de 7 anos, era uma esperança
no futuro e na humanidade. Sempre senti que o Mr. Bonjour aguardava
ansiosamente por esse bom dia. Hoje percebo que o tornei mais pessoa e menos
coisa. Mostrei-lhe que era um homem digno do olhar de uma criança, para além do
idoso consumido pelo álcool e pela amargura. Sem querer, sem pensar nisso, agi
corretamente…. E hoje, quando penso no assunto, fico satisfeita, por, na minha
inocência, ter abraçado um costume tão nosso e assim ter tornado, ainda que de
uma forma tão ténue, a vida do Sr. Bonjour mais doce.
Fui estudar para fora e deixei de
fazer aquele percurso a pé. Deixei de ver o Mr. Bonjour. Não sei o que foi
feito dele…sei que o casebre dele já não existe. Foi destruído e deu lugar a um
estacionamento para um carro…Em tempos ouvi que o tinham levado para um lar.
Sei que deixei de o ver nas ruas. Sei que a casa foi cedendo, lentamente à passagem
do tempo e ao abandono. Àquele a quem tantas vezes disse bom dia não foi
possível dizer até já… nem adeus… À época em que tudo isto se passou não tenho
grandes dúvidas que o Sr. Bonjour já terá abandonado este mundo. O que desejo? Desejo
que naquela nova casa que ele descobriu (o lar), quando abandonou as ruas da
minha “vilinha”, possa ter encontrado alguém que, todos os dias, ao passar por
ele, lhe dissesse “bom dia, como está?”. Espero que tenha encontrado por lá
pessoas que o não “coisificassem” e que o tivessem tratado como uma pessoa,
para além do olhar frio e do mau feitio. Desejo que tivesse encontrado alguém
que lhe adoçasse o olhar.
Gosto de pensar assim. Gosto de
pensar que, na hora em que abandonou este mundo, seguiu para o outro mundo uma
alma bem mais feliz. E gosto de pensar que, na memória dele terá ficado aquela
menina pequenina e rabina que não se assustou com os seus maus modos e que
tantas vezes lhe disse “bom dia!”
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