quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Lancei a mim mesma um novo desafio. O de escrever, uma vez por mês (pelo menos) um conto partindo dos versos de uma canção. O conto partirá desses versos procurando contar uma história diferente da mensagem veiculada pela letra da canção inicial. Este é o primeiro resultado desse desafio.
Se quiserem propor uma letra (desde que estejamos perante boa música ou perante um bom poema), estejam à vontade. E agora, fiquem com:  "Romeu, o Gato".
Enjoy!

As fotos pertencem, mais uma vez ao David Costa. Podem visitar o trabalho dele em: http://olhares.sapo.pt/DavidMOCosta/  ou em https://www.instagram.com/david_mo_costa/





“Romeu, o gato”

“…o olhar triste e cansado procurando alguém
e a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém,
sabes eu acho que todos fogem de ti para não ver,
a imagem da solidão, que irão viver,
quando forem como tu…” – (Excerto de “Velho” de Mafalda Veiga)


Poderia dizer-vos que o Romeu nasceu numa caixinha especialmente preparada para o seu nascimento e o dos seus irmãos, num ambiente quente e aconchegado, rodeado do carinho e mimo proporcionado pelas crianças de uma família amante de felinos, onde já se contava uma mãe gata e um pai gato. Poderia dizer-vos que Romeu fora frugalmente alimentado pela mãe gata, que por estar bem nutrida, produzia muito e bom leite para ele e para os manos. Poderia dizer-vos que os primeiros tempos de vida de Romeu, depois de abrir os olhos, foram passados em felizes brincadeiras não só com os irmãos mas também com as crianças da família. Poderia dizer isso tudo e muito mais…mas estaria a faltar-vos à verdade.
A verdade é que Romeu nasceu na rua. A mãe tinha encontrado o ninho para os seus bebés por baixo de um arbusto onde repousavam, para felicidade da mãe e dos filhos, algumas folhas de um jornal velho e abandonado e um saco de Mac Donald’s por ali largado. E não nascera na rua por um mero acaso. A mãe era uma gata de rua. Aparecera por aqueles lados com o seu ar escanzelado e por ali tinha ficado. Do pai nada se sabia. Provavelmente também seria um qualquer gatão de rua que tinha abandonado a mãe depois de a ter engravidado (o sentimento amor é pouco conhecido entre os felinos…). E foi assim que, Romeu e mais dois irmãos nasceram, sobre um saco de papel do Mac Donald’s. Os primeiros tempos foram algo confusos: a mãe ia e vinha, parava para os amamentar algum tempo e ia embora outra vez. As horas da alimentação eram uma guerra aberta em que aquele que mais força tinha era aquele que melhor se alimentava. Dada à má alimentação da progenitora, depressa o leite deixou de ser suficiente para os três. E, por isso, depressa os três irmãos começaram a abandonar as brincadeiras entre eles debaixo do arbusto e passaram a percorrer as ruas daquela pequena cidade procurando, acima de tudo, comida.
E por isso, pouco tempo depois de ter nascido, pouco mais de 3 meses após o seu corpinho ter chegado a esse mundo, Romeu seguiu a sua vida…deixou para trás mãe e irmãos e partiu à conquista de um lugar para si no mundo, de preferência um lugar que fosse farto em alimento. Foi assim que, entre um dia passado num lado e outro dia passado noutro, descobriu o bairro do Casal Novo.
O bairro do Casal Novo era um bairro tipicamente português, genuíno. As casas, antigas, muitas decrépitas, mantinham as suas fachadas coloridas que lhe ofereciam um ar de alegria e aportavam uma certa jovialidade. As cores do bairro também eram devidas aos estendais de roupa que, em cada casa, se encontravam. O ambiente era o de uma aldeia em que todos se conheciam e sentiam, de algum modo, a falta uns dos outros. Era um bairro formado por ruas e vielas, onde era fácil perder-se e, para Romeu, este era o sítio ideal para viver, encontrando as pessoas quando pretendia, fugindo delas quando era esse o seu interesse. O centro do bairro era o pequeno largo onde se concentrava um minúsculo jardim, com três ou quatro árvores centenárias, os bancos, onde alguns idosos passavam as suas tardes à sombra das árvores, conversando, ou apenas observando as crianças a brincar no pequeníssimo parque que lá existia, analisando o dia e a vida a passar.
Romeu passou a fazer parte deste quadro. As suas manhãs eram passadas, sobretudo, no passeio, pelas ruelas, conhecendo esta ou aquela gata, nalgumas zaragatas com outros machos que por ali passavam, ou optando por ficar no pátio de algumas pessoas que ele considerava lhe merecerem esta atenção. Por lá comia, dormia, descansava, e depois voltava à sua vida de valdevinos. As tardes eram, preferencialmente, passadas no jardim que existia no largo: na paz das tardes de outono, deitado sobre umas folhas mortas e amarelas, menos presente no inverno (escondido algures para dormir as suas 16 horas de sono dos justos), reaparecendo nos dias de sol da primavera e por ali se mantendo numa qualquer sombra nos dias de verão. Como prezava muito a sua independência, aparecia, quando lhe apetecia, junto ao pequeno jardim e por lá passava a tarde a dormitar juntos dos “velhotes” que aproveitavam umas velhas mesas de cimento para jogar às cartas. Sendo um habitante do bairro, alimentava-se do que lhe era oferecido naqueles pratinhos deixados nas esquinas das ruelas: um resto do arroz com frango do almoço, umas espinhas das sardinhas assadas de sábado à tarde ou até uma côdea de pão ali deixada por uma qualquer alma caridosa. E dias havia que o melhor que podia encontrar era uma qualquer lagartixa caçada sob o sol da primavera…Mas Romeu era feliz nesta sua vida…
Contudo, um dia, quando passeava pelo parque, a sua atenção ficou presa numa figura de um velhote, esquálida, sentado no banco do jardim. O velho pertencia ao bairro. Os vizinhos conheciam-no mas afastavam-se um pouco dele. Desde que ficara viúvo, o senhor Manuel, assim se chamava, tinha-se tornado num velho intratável, casmurro, metido com os seus pensamentos… passava as suas tardes no jardim, ora lendo, ora contemplando o vazio, com o olhar perdido, perdendo-se num passado que já se foi… Ninguém procurava perceber o que se passava por trás daquele olhar triste e solitário. Talvez porque encarar este naufrágio de um ser humano se tornasse difícil ou talvez porque o próprio velho não dava espaço para que isso acontecesse. Falava apenas o necessário e tinha-se tornado uma companhia pouco aprazível. Romeu escolheu-o. Começou por se aproximar dele todas as tardes no banco do jardim. Deitava-se perto dele, não se importando com os silêncios do Sr. Manuel (muito pelo contrário, apreciando-os), limitando-se a ser uma presença viva junto daquele ser que ia definhando em vida. Com o tempo, o senhor Manuel passou a apreciar esta companhia felina, tão serena, tão silenciosa, mas tão presente. Parecia que através do seu olhar ele procurava dizer:
- “sei que estás triste, e em sofrimento. Sei que a ausência da tua mulher te é, ainda hoje, impossível de aceitar. Sei das tuas dores físicas e psicológicas…e estou aqui para te ajudar a partilhar esse fardo contigo”.  
E passou a ser habitual, então ver o senhor Manuel a caminhar, num passo vagaroso, desde a sua casa até ao jardim, e do jardim a sua casa, acompanhado por aquele felino que não tinha sido escolhido mas que o tinha escolhido…
Não serei exagerada ao dizer que Romeu tornou mais doce os últimos tempos de vida do senhor Manuel. A preocupação com aquele pequeno ser vivo dera-lhe um pequeno alento, insuflara-lhe um pouco de vida. E chegou o dia, então, que Romeu sentiu necessidade de se aninhar no colo do senhor Manuel. Ali passou toda a tarde, deitado no colo daquele que nem se mexia…Só mais tarde os vizinhos do bairro perceberam que o senhor Manuel tinha vivido as suas últimas horas, dando o seu último suspiro à sombra daquelas árvores centenárias, tendo por única companhia um gato vadio que o tinha escolhido para com ele viver os seus últimos dias. E penso que não será exagero do narrador dizer que Romeu tornou a partida deste velho, esquecido num banco de jardim, bem menos solitária.
Romeu não abandonou o bairro. Pelo contrário, criou novas amizades. Ao longo dos tempos conheceu e criou amizade com aquela menina que, talvez pelo seu ar frágil e macilento passava muito tempo em casa (sem contar as longas estadias no hospital), com aquele velho casal que tinha filhos e netos lá longe (lá pelas “Alemanhas”) e cuja mulher sofria de problemas cardíacos, com aquele jovem que vivia sozinho, muito magro, com um ar também ele adoentado, os olhos vermelhos e as pupilas dilatadas, com aquela senhora que, sem se saber como nem porquê, cometeria suicídio uns tempos mais tarde… e com tantos outros que padeciam de males terrenos ou males da alma…
Romeu era considerado um habitante daquele bairro. Era apreciado por grande parte dos seus moradores. Cultivava um ar sábio, de um velho filósofo. Possuía aquele ar de quem percebeu todos os segredos do mundo. Mas, acima de tudo, possuía um dom que ninguém tinha entendido até agora. Via para além do olhar humano. Conseguia ver, nos humanos, uma luz, azulada, que os acompanhava quando os seus dias na terra estavam contados…Não que o Romeu percebesse isso. Afinal, ela mais não era que um gato…e de rua! Mas a verdade é que a sua natureza o puxava sempre para passar mais tempo junto daquelas pessoas que possuíam essa estranha luz azul à sua volta, invisível ao olho humano mas tão percetível para o nosso Romeu. Por vezes optava por ficar dias, e até semanas, em casa de algumas pessoas que considerava precisarem da sua companhia. Deixava-se ficar por ali, semeando a sua calma, a sua sabedoria no aproveitar a vida com o melhor que ela tem e nos dá, com aquele seu olhar que dizia “estou aqui para te ajudar a suportar essa dor”. A sua presença companheira e, nalguns casos, o seu calor, quando se esticava no colo das pessoas que o acolhiam temporariamente eram, acima de tudo, reconfortantes, um pequeno casulo de carinho de que as pessoas necessitavam. A todas elas ele ofereceu uma despedida desse mundo terreno em companhia, a todas elas ofereceu um carinho ímpar naquela hora que os fez sentir aconchegados na hora da partida.
Romeu lá continua no bairro. A quem o quiser conhecer bastará passar pelo bairro do Casal Novo. Lá o encontrarão a descansar por baixo da sombra de alguma árvore centenária, a fazer a corte a alguma gata ou no colo de algum ser humano…

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