Se quiserem propor uma letra (desde que estejamos perante boa música ou perante um bom poema), estejam à vontade. E agora, fiquem com: "Romeu, o Gato".
Enjoy!
As fotos pertencem, mais uma vez ao David Costa. Podem visitar o trabalho dele em: http://olhares.sapo.pt/DavidMOCosta/ ou em https://www.instagram.com/david_mo_costa/
“Romeu,
o gato”
“…o
olhar triste e cansado procurando alguém
e
a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém,
sabes
eu acho que todos fogem de ti para não ver,
a
imagem da solidão, que irão viver,
quando
forem como tu…” – (Excerto
de “Velho” de Mafalda Veiga)
Poderia dizer-vos que o
Romeu nasceu numa caixinha especialmente preparada para o seu nascimento e o
dos seus irmãos, num ambiente quente e aconchegado, rodeado do carinho e mimo
proporcionado pelas crianças de uma família amante de felinos, onde já se
contava uma mãe gata e um pai gato. Poderia dizer-vos que Romeu fora
frugalmente alimentado pela mãe gata, que por estar bem nutrida, produzia muito
e bom leite para ele e para os manos. Poderia dizer-vos que os primeiros tempos
de vida de Romeu, depois de abrir os olhos, foram passados em felizes
brincadeiras não só com os irmãos mas também com as crianças da família.
Poderia dizer isso tudo e muito mais…mas estaria a faltar-vos à verdade.
A verdade é que Romeu
nasceu na rua. A mãe tinha encontrado o ninho para os seus bebés por baixo de
um arbusto onde repousavam, para felicidade da mãe e dos filhos, algumas folhas
de um jornal velho e abandonado e um saco de Mac Donald’s por ali largado. E
não nascera na rua por um mero acaso. A mãe era uma gata de rua. Aparecera por
aqueles lados com o seu ar escanzelado e por ali tinha ficado. Do pai nada se
sabia. Provavelmente também seria um qualquer gatão de rua que tinha abandonado
a mãe depois de a ter engravidado (o sentimento amor é pouco conhecido entre os
felinos…). E foi assim que, Romeu e mais dois irmãos nasceram, sobre um saco de
papel do Mac Donald’s. Os primeiros tempos foram algo confusos: a mãe ia e
vinha, parava para os amamentar algum tempo e ia embora outra vez. As horas da
alimentação eram uma guerra aberta em que aquele que mais força tinha era
aquele que melhor se alimentava. Dada à má alimentação da progenitora, depressa
o leite deixou de ser suficiente para os três. E, por isso, depressa os três
irmãos começaram a abandonar as brincadeiras entre eles debaixo do arbusto e
passaram a percorrer as ruas daquela pequena cidade procurando, acima de tudo,
comida.
E por isso, pouco tempo
depois de ter nascido, pouco mais de 3 meses após o seu corpinho ter chegado a
esse mundo, Romeu seguiu a sua vida…deixou para trás mãe e irmãos e partiu à
conquista de um lugar para si no mundo, de preferência um lugar que fosse farto
em alimento. Foi assim que, entre um dia passado num lado e outro dia passado
noutro, descobriu o bairro do Casal Novo.
O bairro do Casal Novo
era um bairro tipicamente português, genuíno. As casas, antigas, muitas
decrépitas, mantinham as suas fachadas coloridas que lhe ofereciam um ar de
alegria e aportavam uma certa jovialidade. As cores do bairro também eram
devidas aos estendais de roupa que, em cada casa, se encontravam. O ambiente
era o de uma aldeia em que todos se conheciam e sentiam, de algum modo, a falta
uns dos outros. Era um bairro formado por ruas e vielas, onde era fácil
perder-se e, para Romeu, este era o sítio ideal para viver, encontrando as
pessoas quando pretendia, fugindo delas quando era esse o seu interesse. O
centro do bairro era o pequeno largo onde se concentrava um minúsculo jardim,
com três ou quatro árvores centenárias, os bancos, onde alguns idosos passavam
as suas tardes à sombra das árvores, conversando, ou apenas observando as
crianças a brincar no pequeníssimo parque que lá existia, analisando o dia e a
vida a passar.
Romeu passou a fazer
parte deste quadro. As suas manhãs eram passadas, sobretudo, no passeio, pelas
ruelas, conhecendo esta ou aquela gata, nalgumas zaragatas com outros machos que
por ali passavam, ou optando por ficar no pátio de algumas pessoas que ele
considerava lhe merecerem esta atenção. Por lá comia, dormia, descansava, e
depois voltava à sua vida de valdevinos. As tardes eram, preferencialmente,
passadas no jardim que existia no largo: na paz das tardes de outono, deitado
sobre umas folhas mortas e amarelas, menos presente no inverno (escondido
algures para dormir as suas 16 horas de sono dos justos), reaparecendo nos dias
de sol da primavera e por ali se mantendo numa qualquer sombra nos dias de
verão. Como prezava muito a sua independência, aparecia, quando lhe apetecia,
junto ao pequeno jardim e por lá passava a tarde a dormitar juntos dos
“velhotes” que aproveitavam umas velhas mesas de cimento para jogar às cartas. Sendo
um habitante do bairro, alimentava-se do que lhe era oferecido naqueles
pratinhos deixados nas esquinas das ruelas: um resto do arroz com frango do
almoço, umas espinhas das sardinhas assadas de sábado à tarde ou até uma côdea
de pão ali deixada por uma qualquer alma caridosa. E dias havia que o melhor
que podia encontrar era uma qualquer lagartixa caçada sob o sol da
primavera…Mas Romeu era feliz nesta sua vida…
Contudo, um dia, quando
passeava pelo parque, a sua atenção ficou presa numa figura de um velhote,
esquálida, sentado no banco do jardim. O velho pertencia ao bairro. Os vizinhos
conheciam-no mas afastavam-se um pouco dele. Desde que ficara viúvo, o senhor
Manuel, assim se chamava, tinha-se tornado num velho intratável, casmurro,
metido com os seus pensamentos… passava as suas tardes no jardim, ora lendo,
ora contemplando o vazio, com o olhar perdido, perdendo-se num passado que já
se foi… Ninguém procurava perceber o que se passava por trás daquele olhar
triste e solitário. Talvez porque encarar este naufrágio de um ser humano se
tornasse difícil ou talvez porque o próprio velho não dava espaço para que isso
acontecesse. Falava apenas o necessário e tinha-se tornado uma companhia pouco
aprazível. Romeu escolheu-o. Começou por se aproximar dele todas as tardes no
banco do jardim. Deitava-se perto dele, não se importando com os silêncios do
Sr. Manuel (muito pelo contrário, apreciando-os), limitando-se a ser uma
presença viva junto daquele ser que ia definhando em vida. Com o tempo, o
senhor Manuel passou a apreciar esta companhia felina, tão serena, tão
silenciosa, mas tão presente. Parecia que através do seu olhar ele procurava
dizer:
- “sei
que estás triste, e em sofrimento. Sei que a ausência da tua mulher te é, ainda
hoje, impossível de aceitar. Sei das tuas dores físicas e psicológicas…e estou
aqui para te ajudar a partilhar esse fardo contigo”.
E passou
a ser habitual, então ver o senhor Manuel a caminhar, num passo vagaroso, desde
a sua casa até ao jardim, e do jardim a sua casa, acompanhado por aquele felino
que não tinha sido escolhido mas que o tinha escolhido…
Não serei
exagerada ao dizer que Romeu tornou mais doce os últimos tempos de vida do
senhor Manuel. A preocupação com aquele pequeno ser vivo dera-lhe um pequeno
alento, insuflara-lhe um pouco de vida. E chegou o dia, então, que Romeu sentiu
necessidade de se aninhar no colo do senhor Manuel. Ali passou toda a tarde,
deitado no colo daquele que nem se mexia…Só mais tarde os vizinhos do bairro
perceberam que o senhor Manuel tinha vivido as suas últimas horas, dando o seu
último suspiro à sombra daquelas árvores centenárias, tendo por única companhia
um gato vadio que o tinha escolhido para com ele viver os seus últimos dias. E
penso que não será exagero do narrador dizer que Romeu tornou a partida deste
velho, esquecido num banco de jardim, bem menos solitária.
Romeu não
abandonou o bairro. Pelo contrário, criou novas amizades. Ao longo dos tempos conheceu
e criou amizade com aquela menina que, talvez pelo seu ar frágil e macilento
passava muito tempo em casa (sem contar as longas estadias no hospital), com aquele
velho casal que tinha filhos e netos lá longe (lá pelas “Alemanhas”) e cuja
mulher sofria de problemas cardíacos, com aquele jovem que vivia sozinho, muito
magro, com um ar também ele adoentado, os olhos vermelhos e as pupilas
dilatadas, com aquela senhora que, sem se saber como nem porquê, cometeria
suicídio uns tempos mais tarde… e com tantos outros que padeciam de males
terrenos ou males da alma…
Romeu era
considerado um habitante daquele bairro. Era apreciado por grande parte dos
seus moradores. Cultivava um ar sábio, de um velho filósofo. Possuía aquele ar
de quem percebeu todos os segredos do mundo. Mas, acima de tudo, possuía um dom
que ninguém tinha entendido até agora. Via para além do olhar humano. Conseguia
ver, nos humanos, uma luz, azulada, que os acompanhava quando os seus dias na
terra estavam contados…Não que o Romeu percebesse isso. Afinal, ela mais não
era que um gato…e de rua! Mas a verdade é que a sua natureza o puxava sempre para
passar mais tempo junto daquelas pessoas que possuíam essa estranha luz azul à
sua volta, invisível ao olho humano mas tão percetível para o nosso Romeu. Por
vezes optava por ficar dias, e até semanas, em casa de algumas pessoas que
considerava precisarem da sua companhia. Deixava-se ficar por ali, semeando a
sua calma, a sua sabedoria no aproveitar a vida com o melhor que ela tem e nos
dá, com aquele seu olhar que dizia “estou aqui para te ajudar a suportar essa
dor”. A sua presença companheira e, nalguns casos, o seu calor, quando se
esticava no colo das pessoas que o acolhiam temporariamente eram, acima de
tudo, reconfortantes, um pequeno casulo de carinho de que as pessoas
necessitavam. A todas elas ele ofereceu uma despedida desse mundo terreno em
companhia, a todas elas ofereceu um carinho ímpar naquela hora que os fez
sentir aconchegados na hora da partida.
Romeu lá
continua no bairro. A quem o quiser conhecer bastará passar pelo bairro do
Casal Novo. Lá o encontrarão a descansar por baixo da sombra de alguma árvore
centenária, a fazer a corte a alguma gata ou no colo de algum ser humano…
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