http://p3.publico.pt/actualidade/sociedade/24498/nao-quero-esquecer-quem-sou
“Não quero esquecer quem sou”
Na minha habitual passagem
matutina pelas redes sociais e pelos jornais e os seus suplementos, os meus
olhos pararam numa pergunta que servia de título a um artigo que li mais tarde.
A pergunta era “Que memória gostavas de guardar para sempre?” Percebi, depois
de ler o artigo que se tratava do desafio lançado pela Associação Alzheimer de
Portugal a todos os portugueses para realizarem um vídeo onde revelassem qual
seria a memória que nunca quereriam esquecer, uma única memória que
pretenderiam preservar até ao fim da vida. Dei por mim a pensar que o desafio
era bem interessante e que, provavelmente iria aceitar o ter sido desafiada e
faria o tal vídeo para partilhar. Foi aí que comecei a analisar as minhas
memórias e a pensar em qual seria a memória mais importante para mim até aos
dias de hoje, qual seria aquela que eu quereria manter até ao fim dos meus
dias. Assumo que passaram por mim algumas imagens: a primeira vez que vi as
minhas sobrinhas, aqueles momentos impagáveis em que dás uma gargalhada com a
tua irmã ou aquele momento em que todas as coisas no mundo ficam no sítio certo
por dares um abraço apertado às pessoas que mais gostas ou até o primeiro beijo
dado a uma pessoa que consideras especial. Sinceramente, gostaria no fim da
minha vida de me lembrar desses momentos que citei e de mais uns quantos em que
considero que fui genuinamente feliz. Contudo…não penso que fosse capaz de
escolher apenas um momento. Mas uma coisa tenho como certa: escolheria sempre
um momento em que me senti muito amada, em que senti que fazia parte de uma
família. Eu sei que isto é um nadinha clichê mas a verdade é que me incomoda o
pensamento que um dia poderei esquecer o quanto fui e sou amada por aqueles que
são importantes para mim. Até aos dias de hoje não existiram muitos casos
próximos dos meus afetos que sofressem de Alzheimer (felizmente). Todos os meus
avós (que já faleceram) sabiam quem eram e quem eu era na hora da morte deles.
E quando penso nisso com mais afinco penso o quão importante e bom isso foi
tanto para eles como para mim. A despedida, na hora do falecimento, foi dura
mas a verdade é que não tive de me despedir de ninguém antes dessa hora
fatídica. Considero que é isso que acontece com quem sofre de Alzheimer: vamos
fazendo as despedidas, aos poucos, à medida que a doença vai roubando a memória
de tudo o que é e foi, até ao dia em que apenas resta um corpo, sem as
vivências e memórias que ligavam aquela pessoa à sua família. Contudo, possuo
dois casos (um ainda vivo) e outro que infelizmente já faleceu, que sofreram
dessa terrível doença. Curiosamente, ambas tias-avós. Relembro o quão triste
era ver a minha tia-avó a não reconhecer o seu próprio reflexo no espelho.
Olhava e dizia: “olha, a minha mãe”. A vida para ela tinha ficado lá longe,
numa infância há muito perdida, em que ela ainda era uma criança que brincava
com bonecas. Automaticamente, toda a sua vida ulterior foi esquecida: filhos,
netos, marido, deixaram de existir. Passaram a não ser mais do que seres
estranhos que insistiam em cuidar dela e que viviam perto dela sem que para
isso ela encontrasse uma explicação (não que ela a procurasse). Ela apenas era
uma criança, que brincava com bonecas, sempre que encontrava alguma boneca das
suas netas e que apenas sobrevivia aos dias.
No segundo caso, também um caso de uma mulher
e de uma tia-avó minha, percebi que esta terrível doença lhe estava a roubar o
ser, as memórias e as lembranças no dia em que a fui visitar ao lar onde
atualmente reside e no momento em que ao ter chegado junto dela, os seus olhos
não se iluminaram. Era uma tia-avó muito próxima. Uma outra avó, no que aos
meus sentimentos diz respeito. E sei bem que para ela também eu era uma das
meninas dos seus olhos. E por isso me foi tão difícil perceber que a luz, tão
conhecida nos seus olhos, não se acendeu, quando cheguei. Na época ainda
reconhecia o meu pai (o que, assumo, também me feriu. Como poderia ela
reconhecer o meu pai e não me reconhecer a mim?? É claro que isto não passava
de pergunta retórica para a qual não teria explicação). Pelo que, depois de
cumprimentar o meu pai me colocou a pergunta que me fez perceber que naquele
dia se iniciavam as despedidas: “Quem é a senhora?”A minha tia-avó que me tinha
visto crescer, eu que sempre tinha sido uma das suas meninas, não era
reconhecida naquele momento. Olhou para mim como a mulher feita que já era e
questionou quem era a senhora. Já lá vão uns anos desde essa pergunta. A
situação foi piorando e momentos houve em que me reconheceu e outros não. Neste
momento, o esquecimento de quem fui e do que representei para ela é total. A
minha tia apenas assiste, impávida, aos dias que passam, perdida nos seus
próprios pensamentos, sem a lembrança de que um dia fui uma pessoa importante
para ela. Aquela que sempre falou por mim e por todos nós não considera mais
útil recordar momentos e partilhá-los…
Quando hoje,
logo pela manhã, me deparei com aquela questão: “Que memória gostavas de
guardar para sempre?” pensei em tudo o que aqui escrevo e tenho certeza de que
gostaria de guardar para sempre a memória de quem fui, de quem sou e em quem me tornei. Gostaria, sobretudo,
de ter a certeza de que não me esquecerei daqueles que me acompanharam durante
a viagem. O vazio que se instalou na vida da minha tia será deveras angustiante.
E partir sem as memórias que criaram ao conviver connosco é demasiado pesado
para quem fica. E é isso: à questão “Que memória gostavas de guardar para
sempre?” responderia: a memória de mim mesma.
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