terça-feira, 22 de agosto de 2017


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“Ma tante Marie”
Penso que já terei mencionado por aqui que provenho de uma família de emigrantes. Os meus pais emigraram e tanto eu como a minha irmã nascemos em França. Quase todos os meus tios, tanto paternos, como maternos, foram um exemplo da emigração dos anos 60. Muitos deles, sobretudo os homens, foram “a salto” (expressão que se usava na época para referir aqueles que emigravam, saindo do país de forma ilegal). Aliás, a maioria dos homens emigrantes que conheço, os da minha família, seguiu assim. No geral, as mulheres seguiram para França já mais tarde, já com uma situação mais estável e de forma legal. Falo, neste caso, dos meus, dos casos que conheço.
A minha tia, Maria de Jesus de seu nome, foi uma dessas pessoas que emigrou nos anos 60, para um dos Eldorados da época, França, e que por lá se manteve até aos dias de hoje. É a verdadeira portuguesa emigrante, condensando nela todas as características que estamos habituados a reconhecer nos emigrantes dessa época. Apesar de adorar o país, Portugal, viveu, desde que emigrou, sempre em França. Toda a vida a ouvi dizer que tem saudades de Portugal, contudo, sinto que se vivesse por cá não aguentaria as saudades daquele país que a acolheu e que já considera um pouco seu. Saiu de uma pequena aldeia do centro do país ainda muito nova, contudo, o apego à terra e à agricultura que lhe foram incutidos em Portugal nunca a abandonou. Por isso criou em França um “petit Portugal”. No seu pequeno “jardin” sempre tentou cultivar legumes que lhe recordassem o nosso pequeno canto, com principal destaque para a bela da couve que daria lugar, mais tarde, a um belo e bem português caldo verde. Os produtos portugueses de qualidade que não conseguia adquirir com tanta facilidade em França (porque não os havia ou porque tinham um preço absurdamente elevado nos “magasins portugais” (Leia-se, lojas portuguesas), ela própria os carregava de um país para o outro. Queijos de qualidade, azeite, vinho do Porto, são apenas alguns dos exemplos dos produtos que seguiam para França. Começou por fazê-lo meio escondido nas malas, enquanto se tentava passar incógnito nas fronteiras, quando viajava de carro, e continua a fazê-lo, agora, quando viaja em carrinhas que fazem o transporte de passageiros de um país para o outro. É essa uma das razões pelas quais o avião é um meio de transporte impensável para a minha Maria. A enorme limitação de malas e sacos é um grande handicap que ela não consegue suportar. Por amar o seu país, que teve de abandonar, sempre foi mantendo contacto com a comunidade portuguesa que, como ela, abandonara o país. Aí se relembrava a pátria da forma mais comum que se conhece: usando a sua língua. Era aí que se praticava aquela que foi a sua língua-mãe, aí que se sentia “com os seus”, com uma família adotada por também ela estar “no estrangeiro”. Contudo, com o passar dos anos, e porque vivia mais de 11 meses por ano num outro país, onde tinha de praticar uma outra língua, o francês foi-se instalando, roubando algum espaço ao português parcamente aprendido até à realização da 4ª classe. E, como tal, é normal ouvir a minha tia, assim como a maior parte dos que emigraram dizer que “voltam para Portugal quando tiverem a “retraite” (reforma), que lhe faltou as “carotas” (cenouras) para a sopa, que querem “tranchas de jambon” (fatias de fiambre) ou expressar a sua mágoa ou preocupação usando a máxima francesa “c’est horrible!”. Desengane-se quem acha que a minha tia o faz por não se considerar portuguesa, ou por demonstrar desdém para com a nossa língua. Nada disso. A explicação é bem simples: como referi anteriormente, isto mais não são do que erros de alguém que pouco pratica a língua em virtude de não se encontrar no país. A minha tia, tal como grande parte dos emigrantes dessa geração, teve filhos que já nasceram em França e a maior parte já tem, também, netos. Para os filhos e netos, a língua-mãe é a francesa. É claro que eles vão falando português, incluindo algum vocabulário e alguma cultura portugueses no seu dia-a-dia mas naturalmente o idioma vai sendo paulatinamente esquecido.
A minha “Tante Marie”, tia Jesus, ou apenas Marie, mais não é que uma representante da mulher portuguesa que emigrou para França, para melhorar a sua vida, que lutou para ter o seu canto cá e lá. Uma mulher que trabalhou, muitas vezes, para lá das horas do horário laboral, que acumulou tarefas para providenciar uma vida melhor para si e para os seus. Uma mulher que sabe o valor do trabalho e do dinheiro. Uma mulher que, com uma vida passada num país que não era originariamente o dela, se sente, atualmente, dividida. Volta sempre para as férias. Agora, que é reformada, já se permite passar mais tempo aqui em Portugal. Aproveita para falar a sua língua, para cuidar da sua horta, para frequentar as festinhas da sua aldeia, para conviver com a sua família. Mas a verdade é que, passado algum tempo, a saudade do país que a acolheu começa a crescer. Porque foi lá que passou a maior parte da sua existência, porque foi lá que construiu a sua vida e porque foi lá que plantou novas raízes: filhos e netos. E será essa a eterna maldição do emigrante (a meu ver): o não se sentir o filho de Portugal mas ainda não se sentir filho da França.

Quis falar hoje da minha Tante Marie (usada aqui em modo de sinédoque, como alguém que representa o todo) porque representa a força das mulheres da minha família e, de um modo alargado, da mulher portuguesa que, mediante situações adversas foi à luta, se mostrou resiliente e conquistou o seu pedacinho de mundo e felicidade. Por isso sinto o maior orgulho por essas mulheres!

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