Relembrou-me há uns dias uma
amiga que, em tempos já idos da Faculdade, e durante um seminário de
Literaturas Africanas, o professor, dirigindo-se a mim, tinha referido, não sei
se em tom de desaprovação (as névoas do esquecimento já passaram por aqui) que
eu era uma nova Helena Sacadura Cabral. Terá
esclarecido, em seguida, que tal parecença não era física (valha-nos ao menos
isso!) mas que era uma parecença na forma de estar, tendo sempre uma opinião a
dar sobre tudo e todos. Ainda que considere que o professor tinha alguma razão,
não me lembro deste momento mesmo. Tenho uma memória altamente seletiva (gosto
de explicar assim o facto de ser muito esquecida). Vivo os momentos ao máximo,
sugo a vida até ao tutano mas, quando passa, passa. Não vivo de memórias,
esqueço muito e crio novas memórias. É claro que há momentos que ficam gravados
para sempre. Há momentos e pessoas que ficaram gravados e que continuam “muito
presentes no presente”. Mas são exceções.
Curiosamente, o recordarem-me
desta situação fez-me relembrar um outro momento, também ele na Faculdade, e
este bem mais embaraçoso (Por isso, eventualmente, o não terei esquecido). Numa
aula de Cultura Portuguesa, e questionando o professor se com a entrada do Euro
(sim, sou tão “idosa” que já estava na Faculdade e ainda nós portugueses
fazíamos as trocas comerciais em escudos), não iríamos perder um pouco da nossa
identidade nacional. Afinal, o escudo era nosso, tinha, nas suas notas as
figuras dos nossos escritores, políticos, pensadores… Pareceu-me na altura, e
continuo a pensar deste modo, uma pergunta inofensiva e até pertinente numa
aula de Cultura Portuguesa. Contudo, o mesmo não foi percebido pelo professor
que se achou posto em causa. Pelo que a resposta à minha “inofensiva” pergunta
foi, e passo a citar, penso que praticamente como foi proferido “Estou cansado
das suas questões! E provocações! Você é uma fascista!”. Incrível como está
situação se mantém tão fresca na minha memória, tantos anos depois! É verdade. Eu,
que quase me considero uma defensora dos pobres e oprimidos, tinha acabado de
ser chamada de fascista. Dos restantes acontecimentos não tenho certezas
absolutas mas lembro que o bom senso me
aconselhou a manter a calma e, provavelmente, o silêncio, depois de um
pedido de desculpas e ter tentado explicar que poderia ser tudo menos fascista.
O certo é que as aulas passaram a ser menos participadas, pelo menos por mim, e
que a minha nota de Cultura Portuguesa não foi muito famosa. Provavelmente, o
comunista que existia dentro daquele professor não era dado à distribuição de
boas notas entre alunos fascistas. Ou, eventualmente, eu não seria grande aluna
a Cultura Portuguesa…A resposta a esta questão ficará para sempre adiada.
Um caso relembrou-me o outro e
fez-me pensar no quão distante é a relação entre professor e aluno na
Faculdade. E já estarão várias pessoas a pensar que não é possível haver uma
relação mais estreita, que são professores que trabalham em anfiteatros com
mais de 300 alunos de cada vez. Mas nem sempre é assim. Os dois casos que citei
trabalhavam, na altura, com pouco mais de 30/ 40 alunos. E neste momento posso
afirmar que é possível conhecer os alunos quando trabalhamos em sala de aula
com 30 discentes. É possível saber quais são os que têm o caráter mais
aguerrido, os mais sensíveis, os mais tímidos e, sim, também aqueles que têm
opiniões sobre tudo e nada e, tantas vezes, opiniões contrárias à nossa. É possível, acima de tudo, deixá-los
falar, dar-lhes a possibilidade de ter uma voz que se faça ouvir e, claro,
ouvi-los.
Faço das minhas aulas um local de
partilha de saberes e opiniões. E não se fala apenas de português, da sua
gramática e de Literatura Portuguesa. Fala-se muitas vezes do mundo que nos
rodeia, dos últimos acontecimentos marcantes e de assuntos por eles escolhidos
por os considerarem importantes. Procuro dar voz às opiniões e procuro que
fundamentem as mesmas. Tento que sejam capazes de elaborar um comentário
crítico, seja oralmente, seja na escrita. No fundo, procuro ajudar os meus
alunos a tornarem-se cidadãos conscientes do mundo que os rodeia, donos de uma
opinião válida porque fundamentada. E entendo que já na época da faculdade
concebia o ensino desta forma. Por isso queria participar, por isso queria
opinar e, provavelmente por isso é que tinha sempre uma opinião para dar.
Passados mais de 15 anos sobre os
factos que narrei posso dizer que não considero que o Euro nos tenha roubado a
identidade. Continuamos portugueses com tudo o que isso tem de bom e mau. Talvez
sejamos mais europeus, afinal, partilhamos quase todos a mesma moeda e
circulamos com facilidade pelos vários países europeus e sem a preocupação do
câmbio do dinheiro. Mas esse ser mais
europeu não nos diminuiu a nível cultural. Apenas nos modificou.
Posso dizer ainda que continuo
uma verdadeira Helena Sacadura Cabral. Gostei da ideia de ser comparada a uma
mulher extremamente bem disposta que passou por algumas adversidades com grande
coragem, força e determinação. É uma mulher com uma opinião sobre a vida e o
mundo. Uma mulher dotada de grande clarividência, que expõe o pensamento de
forma clara e perspicaz.
Deste passado relembrado fica a
certeza que o tempo nos pode modelar mas nunca modificar. Tive e continuo a ter
opinião sobre o mundo. Tive e continuo a ter vontade de partilhar a minha
opinião sobre o mundo. E continuo a pensar a escola como um local de partilha,
de saberes e opiniões. Ontem como aluna, hoje como professora.
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