segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017


Relembrou-me há uns dias uma amiga que, em tempos já idos da Faculdade, e durante um seminário de Literaturas Africanas, o professor, dirigindo-se a mim, tinha referido, não sei se em tom de desaprovação (as névoas do esquecimento já passaram por aqui) que eu era uma nova  Helena Sacadura Cabral. Terá esclarecido, em seguida, que tal parecença não era física (valha-nos ao menos isso!) mas que era uma parecença na forma de estar, tendo sempre uma opinião a dar sobre tudo e todos. Ainda que considere que o professor tinha alguma razão, não me lembro deste momento mesmo. Tenho uma memória altamente seletiva (gosto de explicar assim o facto de ser muito esquecida). Vivo os momentos ao máximo, sugo a vida até ao tutano mas, quando passa, passa. Não vivo de memórias, esqueço muito e crio novas memórias. É claro que há momentos que ficam gravados para sempre. Há momentos e pessoas que ficaram gravados e que continuam “muito presentes no presente”. Mas são exceções.
Curiosamente, o recordarem-me desta situação fez-me relembrar um outro momento, também ele na Faculdade, e este bem mais embaraçoso (Por isso, eventualmente, o não terei esquecido). Numa aula de Cultura Portuguesa, e questionando o professor se com a entrada do Euro (sim, sou tão “idosa” que já estava na Faculdade e ainda nós portugueses fazíamos as trocas comerciais em escudos), não iríamos perder um pouco da nossa identidade nacional. Afinal, o escudo era nosso, tinha, nas suas notas as figuras dos nossos escritores, políticos, pensadores… Pareceu-me na altura, e continuo a pensar deste modo, uma pergunta inofensiva e até pertinente numa aula de Cultura Portuguesa. Contudo, o mesmo não foi percebido pelo professor que se achou posto em causa. Pelo que a resposta à minha “inofensiva” pergunta foi, e passo a citar, penso que praticamente como foi proferido “Estou cansado das suas questões! E provocações! Você é uma fascista!”. Incrível como está situação se mantém tão fresca na minha memória, tantos anos depois! É verdade. Eu, que quase me considero uma defensora dos pobres e oprimidos, tinha acabado de ser chamada de fascista. Dos restantes acontecimentos não tenho certezas absolutas mas lembro que o bom senso me  aconselhou a manter a calma e, provavelmente, o silêncio, depois de um pedido de desculpas e ter tentado explicar que poderia ser tudo menos fascista. O certo é que as aulas passaram a ser menos participadas, pelo menos por mim, e que a minha nota de Cultura Portuguesa não foi muito famosa. Provavelmente, o comunista que existia dentro daquele professor não era dado à distribuição de boas notas entre alunos fascistas. Ou, eventualmente, eu não seria grande aluna a Cultura Portuguesa…A resposta a esta questão ficará para sempre adiada.
Um caso relembrou-me o outro e fez-me pensar no quão distante é a relação entre professor e aluno na Faculdade. E já estarão várias pessoas a pensar que não é possível haver uma relação mais estreita, que são professores que trabalham em anfiteatros com mais de 300 alunos de cada vez. Mas nem sempre é assim. Os dois casos que citei trabalhavam, na altura, com pouco mais de 30/ 40 alunos. E neste momento posso afirmar que é possível conhecer os alunos quando trabalhamos em sala de aula com 30 discentes. É possível saber quais são os que têm o caráter mais aguerrido, os mais sensíveis, os mais tímidos e, sim, também aqueles que têm opiniões sobre tudo e nada e, tantas vezes, opiniões contrárias  à nossa. É possível, acima de tudo, deixá-los falar, dar-lhes a possibilidade de ter uma voz que se faça ouvir e, claro, ouvi-los.
Faço das minhas aulas um local de partilha de saberes e opiniões. E não se fala apenas de português, da sua gramática e de Literatura Portuguesa. Fala-se muitas vezes do mundo que nos rodeia, dos últimos acontecimentos marcantes e de assuntos por eles escolhidos por os considerarem importantes. Procuro dar voz às opiniões e procuro que fundamentem as mesmas. Tento que sejam capazes de elaborar um comentário crítico, seja oralmente, seja na escrita. No fundo, procuro ajudar os meus alunos a tornarem-se cidadãos conscientes do mundo que os rodeia, donos de uma opinião válida porque fundamentada. E entendo que já na época da faculdade concebia o ensino desta forma. Por isso queria participar, por isso queria opinar e, provavelmente por isso é que tinha sempre uma opinião para dar.
Passados mais de 15 anos sobre os factos que narrei posso dizer que não considero que o Euro nos tenha roubado a identidade. Continuamos portugueses com tudo o que isso tem de bom e mau. Talvez sejamos mais europeus, afinal, partilhamos quase todos a mesma moeda e circulamos com facilidade pelos vários países europeus e sem a preocupação do câmbio do dinheiro.  Mas esse ser mais europeu não nos diminuiu a nível cultural. Apenas nos modificou.
Posso dizer ainda que continuo uma verdadeira Helena Sacadura Cabral. Gostei da ideia de ser comparada a uma mulher extremamente bem disposta que passou por algumas adversidades com grande coragem, força e determinação. É uma mulher com uma opinião sobre a vida e o mundo. Uma mulher dotada de grande clarividência, que expõe o pensamento de forma clara e perspicaz.

Deste passado relembrado fica a certeza que o tempo nos pode modelar mas nunca modificar. Tive e continuo a ter opinião sobre o mundo. Tive e continuo a ter vontade de partilhar a minha opinião sobre o mundo. E continuo a pensar a escola como um local de partilha, de saberes e opiniões. Ontem como aluna, hoje como professora. 

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